terça-feira, maio 03, 2005

Caia na Noite - Capítulo 1

Hoje, inicia-se a publicação de "Caia na noite", novela em 10 capítulos semanais.
Aos que têm ojeriza à palavra "novela", um alívio: não tem nada a ver com as produções da TV brasileira (ou mexicana...). Novela é originalmente o nome de um formato literário maior do que o conto e menor do que o romance, dividido em capítulos ou episódios. Daí as citadas atrações televisivas, tão amadas e odiadas, serem, na verdade, telenovelas, ou novelas para a TV, sucessoras das radionovelas dos tempos áureos do rádio.
Estejam avisados: "Caia na noite" não pretende criticar nenhuma tribo urbana ou estilo de vida individual ou grupal. É antes um suspense urbano e uma alfinetada na alienação geral. E, sim: é uma história de VAMPIROS.
Escrita há mais de um ano, tem um pouco do meu estilo atual e NÃO tem um pouco do meu estilo atual, coisas que eu mudaria, coisas que deixaria como estão. Diverti-me escrevendo-a. Espero que se divirtam lendo-a.
Fiquem agora com o primeiro capítulo. Não deixem de enviar suas críticas, comentários, avacalhações ou mesmo elogios. É pra isso que o link Comments serve.

Capítulo 1: O obscuro 1387


Ela tomou o pincel e pôs-se a delinear meticulosamente as bordas das pálpebras. Teve o cuidado de esticar os cantos com o traço para conferir a si mesma um ar ligeiramente oriental. Depois, aplicou nos olhos as lentes de contato especiais. As pupilas, agora, pareciam-se com dois pequeninos pontos negros, rodeados pelas íris brancas, sobrenaturais.

Já arrumara os cabelos tingidos de vermelho-rosado, usando gel e um pente finíssimo de remover lêndeas. Isso prevenia quaisquer ondulações. Os fios agora estavam perfeitamente divididos ao meio e absolutamente retos até as omoplatas.

Deu uma última olhada em si mesma. A base importada casava bem com sua pele de leite, que evitava o sol a qualquer custo. O lápis marrom realçava os arcos de suas sobrancelhas e um batom carmim enganava a miudez dos lábios. A saia preta de pregas exibia coxas tenras e os coturnos de salto lhe emprestavam sete centímetros de elegância. Mas ainda faltava alguma coisa.

Na gaveta da cômoda, escolheu, entre inúmeras gargantilhas, uma com o pingente em forma de ankh, a cruz egípcia. Ajeitou com as mãos o decote da blusa junto dos seios. Apanhou a bolsa de vinil com a figura de um morcego costurada – havia custado 3 ou 4 meses de sua mesada, mas valera a pena – e, agora, sim, estava pronta.

Tomou um ônibus até a estação de metrô mais próxima. Fez a baldeação na Sé e usou a linha norte-sul até Ana Rosa, de onde seguiu para Consolação. Gostava da Avenida Paulista. Mesmo nas noites dos dias úteis, a grande via e suas cercanias eram agitadas e podia-se ver todo tipo de gente, todo tipo de tribos urbanas, e criaturas singulares como ela podiam passar despercebidas.

Desceu a Rua Augusta com certa dificuldade, enfrentando uma turba vagamente intelectual que ia no sentido contrário. Noite após noite, ininterruptamente, tudo acontecia ali, nos recônditos inexplorados, livrarias e sebos, escritórios e apartamentos, casas noturnas e bares, butiques e brechós, bingos e botecos, saunas e prostíbulos.

Ela parou diante do número 1389. Eram 20:20. Olhou para o número anterior: 1385. Tirou o papel amassado da bolsa, no qual uma letra quase infantil anotara: Augusta 1387. Estava na calçada certa. Onde estava o 1387?

A pesada porta de ferro à sua frente devia ser uma entrada anexa de uma das duas casas, já que não tinha qualquer placa informativa. Ela podia ouvir os sons que passavam pela fresta. Empurrou-a com uma mão tímida. Um longo e estreito corredor de paredes descascadas apareceu; levava a cômodos diferentes. Vozes festivas vinham do fundo. No piso de tábuas, pintado aparentemente há muito tempo com um letreiro manual, estava o número 1387.

Ela entrou. O chão resmungou alto sob seus passos. À direita, havia um recinto aparentemente vazio, ainda que um diálogo casual surgisse do seu interior e ela pudesse ver silhuetas projetadas nas paredes através de uma porta entreaberta. Havia uma escada apertada, sob a qual duas garotas agachadas sussurravam. Tinham um aspecto de hippies fora de época e não pareceram notá-la. Ela subiu as escadas.

No andar de cima, encontrou três recintos de piso desnivelado. Dois degraus desciam até uma sala comprida, na qual computadores de última geração contrastavam com prateleiras empoeiradas, lotadas de objetos de antiquário. Não havia ninguém lá. A porta do segundo cômodo, com lascas de verniz faltando e completamente rabiscada com tinta de caneta comum e giz de cera, estava trancada com um cadeado. A terceira sala, cujas grandes janelas davam para a rua, devia ficar sobre a casa 1385, uma construção térrea. O silêncio era completo. Grandes telas pendiam das paredes. Não era uma conhecedora de artes plásticas, mas os quadros lhe pareceram abstratos e desinteressantes. Desceu.

No corredor, mais adiante, viu uma nova sala, bastante apertada, onde um velho de boina e óculos falava sozinho num idioma que ela não identificou, procurando qualquer coisa nas altas pilhas de revistas em quadrinhos usadas que o rodeavam de todos os lados. Um rapaz folheava velhos gibis preto-e-brancos.

O próximo recinto era todo amarelo e igualmente abarrotado de livros, porém mais amplo, e a parede da frente abria-se por completo para o corredor. Pequenas mesas redondas abrigavam copos vazios e a conversa animada de grupos que se sentavam à sua volta. No fundo, um homem discutia com uma mulher muito maquiada que lia cartas de tarô. A única fonte de luz era um abajur que lhe pareceu descomunalmente grande e fora de moda, como a mobília de sua avó, que era a mesma desde os anos 70. Boa parte dos presentes encarou-a como se ela fosse uma turista, voltando a ignorá-la em seguida.

Havia ainda um último ambiente no fim do corredor, que acabava numa pequena escada de tijolos, sem corrimão, num ponto em que as paredes estavam quebradas e o terreno se abria num jardim decadente. O chão era de concreto rachado, entremeado de toda sorte de ervas daninhas, e junto aos muros crescia um tipo de trepadeira de grandes folhas, que ela decidiu serem videiras, porque lhe soou mais romântico. Um quartinho nos fundos, do qual um homem entrava e saía repetidamente, sugeria uma pequena cozinha ou adega. Mais boêmios em torno de mesas muito próximas umas das outras.

Sentiu-se desolada. Aquele lugar não tinha nada a ver com ela, e aquela gente, menos ainda. Garotas de jeans gasto e rapazes de cabelo desarrumado. Embora fossem jovens, bebessem, fumassem e conversassem alegremente, ela se sentia uma intrusa numa aldeia inimiga. E, o pior, ele não estava lá. Eram 20:40. Será que tinha errado de dia? Não, o encontro fora marcado para a quarta-feira, com toda a certeza. Ele não viria, apostou.

Caminhou de volta à escada e, quando se preparava para subí-la, alguém a tocou no ombro.

Querem saber o que vem depois? Passem por aqui na semana que vem, sem falta!


 

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