segunda-feira, maio 09, 2005

Caia na Noite - Capítulo 2

Formas de morrer


– Desistindo tão cedo?

A voz de Fabiano acariciou seus ouvidos e fê-la sorrir quando se voltou para ele. Sem dúvida, era o mesmo Fabiano do fim de semana, embora a luz amarela das lâmpadas roubasse um pouco do vigor de seu rosto.

– Pensei que você ia me dar o cano.

– Eu disse que estaria aqui, não disse?

Sim. Antes de deixá-la sozinha no balcão da danceteria, ele escrevera um endereço num guardanapo e o pusera nas mãos da garota, dizendo: Se você quer mesmo isso, vá a esse lugar na quarta-feira, às 21:30. Já estarei lá quando você chegar. Mas não conte a ninguém, porque eu vou saber se você fizer isso.

– Vamos nos sentar – sugeriu ele. – Toma um chope?

Agora, ela podia observar claramente seus grandes olhos de um azul profundo, marítimo, e o brilho dourado dos cabelos castanhos, muito curtos. De jeans e uma simples camiseta. não parecia tão altivo e enigmático quanto no último sábado, mas, sem dúvida, era bonito. Ele a vira com as amigas e aparentemente interessara-se pela conversa. Ouvira-a falando sobre quem queria ser, o que queria ser. Apresentara-se, então, sem qualquer cerimônia, dera-lhe o endereço e saíra andando, sem mais.

Ela tirou da bolsa um maço de cigarros, não tanto porque estivesse com ganas de fumar, mas principalmente para exibir seu novo isqueiro de aço inoxidável.

– Quantos anos você tem, menina?

– Fiz dezoito no mês passado! – respondeu ela, um pouco afoita, em meio a uma tragada.

Ele sorriu, maroto.

– Se bem que eu podia te ensinar uma ou duas formas mais rápidas de morrer...

A censura dele a desconcertou; procurou lançar-lhe um olhar insinuante para disfarçar seu constrangimento, enquanto apagava o cigarro ainda inteiro no cinzeiro sobre a mesa. Tinha vontade de agradá-lo, muito mais do que era capaz de admitir.

– Bom, menina, não sei seu nome...

– Meu nome é Liliana, mas minhas amigas me chamam de Lilith.

– Uau! Lilith, mãe de todos os demônios e seres malignos da escuridão? – zombou ele, gesticulando afetadamente com as mãos. – Nossa, você conseguiria ser mais óbvia do que isso?

– Escuta aqui – redargüiu ela, impaciente –, que espécie de lugar é esse? Por que aqui?

– Queria o quê, um cemitério?

– Não seria ruim.

– Não quero saber de gente morta. Aqui é, tipo, uma cooperativa. Tem o bar, o sebo ali na frente... No andar de cima, tem o cybercafé e a galeria. É ótimo, todo mundo se conhece. Você não gostou?

– Não, é bem legal – mentiu ela, diante do olhar desapontado de Fabiano. – Gostei desta “cooperativa”... sou uma boêmia, como você.

– No seu caso, é uma opção. No meu, um modo de vida. É isto ou não ter convívio social, já que durmo o dia todo. Não tenho muita alternativa a não ser cair na noite. Esse povo aqui curte a vida até a madrugada, mesmo tendo de trabalhar na manhã seguinte. Mas o sebo é meu, uma menina fica por aqui de dia pra mim e eu venho à noite.

– Você trabalha aqui?

– Também tenho de ganhar a vida, né? Ou você acha que eu entro nas baladas na faixa? E eu pago conta de luz, de água...

Liliana emudeceu.

– Você esperava... um certo refinamento, não? – Fabiano estreitou os olhos em busca da palavra certa. – Um certo glamour? Sou um cara comum sobrevivendo nesta metrópole caótica, garota. Sem frescura. Fala uma coisa: você tem religião?

– Eu... fui batizada, minha mãe é católica.

– Então, seja também. Ou vire evangélica. Ou budista, harekrishna, tanto faz. Mas acredite em algo que lhe dê conforto de verdade e lhe proporcione algum crescimento espiritual. Ou acredite que não há um ser maior e que a gente tem de cuidar de si mesmo sozinho, como puder. Mas não creia em deuses da moda. Nem em estereótipos da mídia, vampiros de Hollywood e outras coisas que você idealiza e não compreende.

Liliana bateu com os punhos sobre a mesa.

– Pensei que você quisesse me ajudar!

– Bom, estou tentando.

– Então, por que quer que eu mude de idéia?

– Só estou sendo franco. Você, sei lá, fantasia demais. Está comprando uma faca de dois gumes. Lembra aquele ditado, “cuidado com o que você deseja, pois pode...”

– Vir aqui foi perda de tempo.

Ela se ergueu bruscamente, a bolsa nas mãos, os lábios franzidos. Fabiano não esboçou reação.

– Você nunca vai ter certeza se for embora agora – disse. – Tá com fome?

– Quê?

– Tá com fome? Vem, eu te levo pra jantar.

Ofereceu-lhe o braço, como um perfeito cavalheiro, e ela o tomou. A sugestão lhe apetecia. Agora, sim, ele estava sendo cortês, como ela esperava.

Enquanto saíam, Fabiano cumprimentou e acenou para diversas pessoas em cada um dos recintos. Liliana arriscou sorrir para os desconhecidos, mas não teve retribuição.


Na semana que vem: Carne crua e artifícios!


 

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