terça-feira, maio 24, 2005

Caia na Noite: Capítulo 4

Pingando sangue


Liliana desistiu de entender. Mas podia ver, agora, por inteiro, a garota do canto. Parecia do tipo mignon; era muito pálida, tinha cabelos louríssimos, espetados; vestia roupas surradas que lhe pareceram pouco femininas e continuava a fitá-la em confessa arrogância. Liliana decidiu sustentar o olhar, desafiando-a; a garota, no entanto, não se intimidou. Ao contrário, seu sorriso abriu-se. Começou, então, a rir baixo. Gargalhava insanamente, cheia de um deleite absurdo. Um calafrio intenso sacudiu o corpo todo de Liliana. A absurda situação fê-la pensar que aquela devia ser uma dessas indigentes ensandecidas que circulavam tristemente pela cidade. Achou melhor não reagir e, instintivamente, encolheu-se no seu lugar. Não foi capaz de desviar o olhar até que a estranha deixasse de rir e Fabiano retornasse, desabando, lívido, na cadeira diante dela.

– Você... tá se sentindo bem?

– Já passou, obrigado... Droga, eu não aprendo... – enterrou o rosto nas mãos. – Sei que não devo comer... mas é tão bom! E pingando sangue... O que foi?

– Aquela menina esquisita não pára de olhar para cá.

– Dobre a língua quando falar da minha namorada!

– Como?!

– Isso mesmo, aquela “menina esquisita” é minha namorada.

– Não acredito...

– Por que não? O que é... você acha que eu não encaro? Que ela é demais para mim?

Liliana meneou a cabeça lentamente. Obviamente, era o contrário: Fabiano era o tipo de homem que, num piscar de olhos, conseguiria coisa muito melhor do que aquela doida que ria. Mas um estalo iluminou, então, o raciocínio dele.

– Espere. Você pensou que isto aqui era, tipo, um encontro? Lamento por isso, Lóló, mas tenho certeza de que não combinamos nada assim. Você me pediu outra coisa!

– É isso aí – falou ela, rispidamente. Sua decepção era óbvia. Quando ele marcara o encontro e depois lhe oferecera um jantar, ela julgara que, mais cedo ou mais tarde, seria apropriadamente cortejada. Fabiano era o seu tipo. Mas, afinal de contas, isso seria apenas um bônus, um adendo romântico; seu objetivo principal era muito diferente. Muito superior. E, já que não poderia mesmo obter benefícios extras, era melhor tratar logo de negócios.

– E então? Você vai continuar me enrolando?

– Bom, eu não sei... – Ele passou a mão pela nuca. – Isso é novo para mim. Ninguém jamais me pediu isso antes. Não posso decidir de uma hora para outra. Não sei se é certo, e não sei se você merece.

– Você me leva de um canto para outro, joga um charme barato, me xinga, come carne crua na minha frente e ainda não sabe se eu mereço?! – Liliana levantou-se, abraçando a bolsa e mordendo os lábios. – Bem, então também não sei se você merece que eu acredite na sua lorota, cara, e acho que você tá de onda comigo. Eu não sou palhaça de ninguém, tá me ouvindo? E você, você é um...

– Calma, Lulu, não se enerve. – Fabiano ergueu ambas as mãos, em rendição. – Ninguém está aqui para zombar de você. Eu não quis ser indelicado, está bem? Mas, como eu já disse, isso é muito novo, e é muito raro, então não posso sair por aí espalhando para qualquer um, entende? A pessoa deve ser especial. Eu sei que você é especial. Mas nós precisamos ter certeza. – Olhou de esguelha para a garota da outra mesa, esperando que Liliana pudesse compreender que a decisão não cabia unicamente a ele. Com isso, ela pareceu acalmar-se. Fabiano continuou: – Nunca pensamos em formular nenhum tipo de teste para julgar quem é digno. Vamos precisar de um tempo para pensar. O que você me diz de nós nos encontrarmos de novo daqui a uma semana?

Ela respirou fundo.

– No mesmo lugar?

– Não, vamos mudar de ares. Que tal na frente do Teatro Municipal... na próxima quarta, às 23h?

Ela arregalou os olhos.

– Que foi, tem medo?

– É claro que não!

– Então, tá combinado.


Na próxima semana, entenda... As coisas como são.


 

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