A sociedade dos proscritos
Éramos um grupinho inédito. Isso porque não éramos bem um grupo. Éramos mais como hienas expulsas de um bando ou elefantes velhos que voluntariamente deixam a manada para morrer sem incômodo.
O Leônidas era gay. Não sabia, o pobre. Nada contra ser gay. Ruim era negar o que todos viam, que saltava aos olhos mais distraídos, por mais que ele jurasse gostar de uma menina da quinta D. Quinta série D. Ele estava na classe C, fraquinha. Eu, na A, mais adiantada, rezava a lenda e contradiziam-na os meus companheiros de aula.
Mas o Leônidas, pobre besta. Seus tremeliques, sua indecisão. Só nosso grupo duvidoso o abrigaria. Vagamente gorducho, declaradamente ignorante, só o salvavam o riso fácil e os olhos de mar caribenho. Quem já foi a Cuba sabe do que falo. Eu que não fui sei. Azul-esverdeado cristalino.
A Jaci, aos doze, punha medo aos moleques mais robustos da área. Alta, braços que valiam por pernas e pernas que valiam por toras. Para ela, eu, de cavalinho, era como a mochila às costas. Ia no lombo dela pela escola toda, Master e Blaster, ninguém se lembra do Mad Max, não? Cabelinho sempre preso na ilusão de domar madeixas crespas, da mesma cor da pele, um marrom-cocada multi-étnico. O vocabulário de criança desdizia todo aquele tamanho. E a saia? Todo dia. Evangélica, tocava saxofone na igreja eu-sei-lá-qual e vinha para o intervalo falando palavrão e rindo com as partituras de diversas ave-marias sob o braço.
Era uma amigona por diversos ângulos, a Jaci. Do jeito que sabia. Enquanto precisávamos.
Eu? Pequena, interrompida a meio caminho de mulher, com o recato de uma freira e o temperamento de um rinoceronte. Já não era criança, odiava ser adolescente e morria de medo de ser adulta. Algo dentro de mim esperneava pedindo mais tempo na infância, barata envenenada quando a gente olha e ri e pára de girar que eu quero descer, mundo cão! E ficava lá sentada entre os dois. Onde mais ficaria? Não tenho vocação pra loba solitária. Nasci pra viver em matilha. De vira-latas, que seja.
Não éramos bonitos pra fazer parte dos grupos das patys e seus paqueras. Não éramos descolados pra ser os grandes palhaços da turma. Não éramos tão fracos que apanhássemos dos valentões.Não éramos geniais pra ser os CDFs da vez. Nem éramos rebeldes para cabular aula e fumar no banheiro. Éramos só nós, inclassificáveis, anônimos.
Por isso nós nos juntávamos no intervalo. Dividíamos lanches, conversávamos amenidades e até mesmo nos divertíamos. Não tínhamos os telefones uns dos outros, não sabíamos sequer fazer visitas mútuas, que coisa tão sem jeito ser como éramos... Grupo, só na hora da caça, pra passar ao largo dos leões.
O ser humano quer pertencer. Se não a outro ser humano, ao menos a uma categoria. Porque grupo é identidade. Grupo é proteção. Sobrevivência. Estar fora do bando é ser peso morto, elefante velho, hiena manca. Estar fora é ser deixado no caminho, para trás, para o cafezinho com biscoitos do predador. Então nós nos aglomerávamos como a natureza quer e o medo exige. Na selva de pedras ginasial, sentados no mesmo banco de cimento.
Tinha de ser. Pra um dia acabar.
Não sei bem quando foi. O bando se extinguiu devagar, sem traumas, complexos, amplexos. Nem despedidas. O banco de cimento ficou frio, as bundas se cansaram do mesmo lugar, as bocas, do mesmo interminável carrossel de assuntos frouxos. Não foi alegre nem triste. Só foi. Já era.
Onde será que anda a Jaci? Mora na rua do meu ex-noivo, é, eu fui noiva, o cara, também coleguinha de escola, desmanchamos... mas ela, a Jaci, ela casou? Largou o sax? Topei com ela numa avenida improvável muitos anos depois daquela época e bem antes de hoje. Tão automático não trocarmos telefones. Que bom te ver, alegria genuína mas sem talento pra se prolongar.
O Leônidas é coisa que nunca mais vi. Fingiria que não vi, se visse. Ver pra quê? Perguntar da vida, que vida o quê, santa hipocrisia, meus amigos. Crueldade o meu rabo. Ou o dele. Felicidade de dentro pra fora, ou de for para dentro, na direção em que quiser, certo? Certo, ainda fico nervosa de lembrar da besta zombando dos meus hobbies. Menininha que era, menininha que sou.
Fui na cola dos outros, depois descolei, fiquei descolada, não de todo e nunca mesmo, pra dizer a verdade. Fachada. Aprendemos. Contamos piadas e botecos, furtamos dos outros beijo e paciência, pisamos no orgulho e na jaca, rimos da cara do cara e do couro curtido, escorregamos no quiabo e no sotaque, engolimos desaforos e as gostosas da turma, pois sempre tem uma gostosa onde tem turma e a gente engole ou se manda, e se não houver a gostosa, o palhaço e o líder, não é turma, é o bando de hienas mancas, o cantinho dos enjeitados, a sociedade dos proscritos.
Não sonho voltar, não sonho poder diferenciar o que eu fui daquilo que eu poderia ter sido, não sonho, de fato, com o que foi, mas com o que vai ser. E termina assim. Não tem fim porque não é história. Fim é onde eu ponho o ponto e não escrevo mais nada depois. Acaba o meu dia e eu não acabo, minha vida não acaba. Meu fim diário é o fechar de olhos antes do primeiro sonho da noite e amanhã tem mais sob os meus protestos.
Eu gosto dos pesadelos de garras e foices. Só não gosto de quando sonho com o banco de cimento. Porque eu me sento lá sozinha, anônima, e espero o trem da madrugada, olhando pro pátio vazio e pensando nos tiros em Columbine e nas metralhadoras dentro do cinema, tem xarope que quer ser médico, e pisco quando bum, bum, bum, alguém cai de novo pra sempre e desaparece no fundo escuro e desavergonhado do meu coração proscrito.
Soy un perdedor
I'm a loser baby, so why don't you kill me?*
*Beck