quarta-feira, junho 29, 2005

Caia na Noite: Capítulo 10 - FINAL

O povo da noite

Um som contínuo, irritante. Algum aparelho ligado? Tudo escuro. Seria a morte assim? A escuridão completa e a tortura eterna de uma máquina que sugava... poeira?!

As pálpebras se ergueram de súbito. Muito claro! Apertou os olhos feridos. Luz do dia entrando agressiva pela janela. Seu quarto. O aspirador de pó.

– É melhor você se levantar, Liliana, sua mãe me mandou limpar o seu quarto e ela não tá feliz por você ter passado a noite fora. No meu tempo, menina de família ia pra cama às dez, não era essa pouca-vergonha, não...

– Lucinéia?

– Até ontem, esse era o meu nome, né? Que cara é essa, menina, andou bebendo? Tá com cada olheira...

Liliana não ouvia mais os queixumes da doméstica. Olhava abismada para a luz que entrava no cômodo. Meio-dia? O calor estava forte e as plantas no jardim, quase torradas, mas seus olhos se acostumaram à claridade. Estranho... não era para ela se sentir letárgica ou queimar diante do sol ou coisa assim?

– Sua amiga Cris ligou, disse que precisa do livro de Biologia que você pegou emprestado, aquele com a capa azul, e o caderno de Química. Ela vai passar pra pegar as coisas dela à tarde, mas acho que tá puta da vida com você, porque pediu pra deixar tudo separado e pra eu entreg...

– Lucinéia – falou Liliana, seca – cala a boca. Quero que você e a Cris vão pro inferno.

De que lhe importava que a menina viesse buscar livros e cadernos e que estivesse zangada e que sua mãe não aprovasse seus passeios à noite e que a empregada fosse uma velha mal-amada que só ficava reclamando? Por que iria querer saber de todas essas coisas se fora morta, ressuscitada e morta de novo, e ressuscitada outra vez, e manipulada, enganada por um par de mentirosos, sacanas... Como podia?

Nada havia mudado. Ela sonhara com seu maior desejo atendido, acreditara em tudo o que eles lhe haviam dito, deixara-se convencer, iludir... mas estava de volta à sua vidinha medíocre, cercada de pequenos luxos, pequenas ambições e conquista nenhuma. Uma vidinha de domésticas tagarelas, mamães entediantes e amigas inconvenientes. Como alguém podia brincar assim com sua vontade? Como eles ousavam?

Nesse dia, ela almoçou cabisbaixa, respondendo às perguntas dos pais com monossílabos. Seu ar de profundo desalento desencorajou um interrogatório mais incisivo. Depois, trancou-se no quarto, pensando, pensando.

Ela nunca saltara do alto de um prédio, ou não estaria viva para contar. Talvez nunca tivesse sido levada até lá por aqueles dois e eles nem existissem. Não!

No meio da tarde, tomou um banho, meteu-se numa roupa qualquer, apanhou a bolsa e saiu.

Acotovelou uma série de pessoas no metrô, mais por despeito do que por necessidade. Foi pela Rua Augusta abaixo, pisando duro e fazendo com que os transeuntes se desviassem, instintivamente, do seu caminho. Entrou na casa no 1387. Lá dentro, parou diante da sala que se abria para o corredor, com suas mesas velhas de fórmica e seu abajur cafona. A hippie fora de época que vira na outra vez estava sentada sobre uma mesa e fumava um cigarro cheiroso. Liliana procurou conter a raiva que sentia de tudo e de todos.

– Você sabe a que horas o Fabiano chega?

A hippie, sossegada, soltou fumaça e falou, com seu hálito de canela:

– Ele não vem.

– Não vem hoje?

– Não vem hoje, nem amanhã, nem depois de amanhã.

– Mas e o sebo?

– Tá aí...

– Quem tá cuidando do sebo? E... dos quadros lá em cima?

– Um cara veio e comprou tudo. E o sebo, o Fabiano vendeu pro Ianko. Já tinham acertado faz tempo.

– Ianko?

– O tio de boina, gringo...

– E aonde foi o Fabiano?

– Pergunta pro Ianko.

Liliana teve de se contentar com aquelas informações, pois a moça fumante saiu do ar feito alma desencarnada em fim de sessão espírita.

– Com licença – disse, parada na porta do sebo, quase tímida. – O senhor é o Ianko?

– Sou – respondeu o velho, carregado de um estranho sotaque. Era baixo, tinha um longo nariz, óculos quadrados e um aspecto pitoresco, mas não muito acolhedor. Não desviou os olhos do seu gibi em preto-e-branco.

– O senhor sabe como faço para encontrar o Fabiano?

– Não sei, não. Ele me vendeu isto aqui e sumiu. Vai perguntar lá no Portuga.

– Onde?

– No boteco no final do quarteirão.

Não se atreveu a amolá-lo mais. Supôs que o lugar deveria ficar mais abaixo na mesma rua. Desceu. Diante de um boteco, várias cadeiras e mesas de metal estavam espalhadas pela calçada, dificultando a passagem, e um letreiro encardido dizia Portuga.

Liliana foi encarada por duas mulheres gorduchas de meia-idade. Uma delas tinha na mão um copo de vodka com gelo. A outra tinha no colo uma enorme bolsa de academia; de dentro dela, espichava-se a larga cabeça de um gato laranja, peludo e ranzinza. A mulher tratava do seu pêlo com uma escova de cabeleireiro.

Liliana se sentiu constrangida diante dos olhares que lhe eram lançados e teve o impulso de falar.

– Por favor, alguma de vocês conhece o Fabiano ou a Marisa?

– Conhecemos o Fabiano – falou a do gato.

– E a Marisa, claro – emendou a da vodka, com um sorriso esquisito.

– Sabem onde posso encontrá-los?

– Não – foi a resposta em uníssono.

Estava desolada. Não teve ânimo de pedir que lhe informassem quem mais poderia saber do paradeiro dos dois. Sentia que iria acabar percorrendo a cidade toda se insistisse nisso.

Estava claro que eles não queriam ser encontrados.

Naquela noite, sorrateira, a garota subiu no topo de um prédio já conhecido. Não foi difícil; moleques mais novos do que ela, ansiosos por deixar sua assinatura de spray na metrópole, galgavam posições bem mais perigosas. Ela simplesmente usou o elevador e as escadas, enquanto uma garoa muito fina começava a cair sobre a cidade, refrescando a noite quente e deixando pontinhos escuros nas calçadas.

Lá no alto, ela ficou de pé sobre a borda do edifício e respirou fundo, olhando para baixo. Ia mesmo fazer aquilo? Devia realmente experimentar aquela sensação? Precisava de mais provas de que nada tinha sido como planejava e de que fora enganada?

Ela apertou os lábios.

– Tenho que admitir que você é persistente.

Voltou-se rapidamente para descobrir a fonte dessa voz a poucos metros de onde estava. Marisa, de braços cruzados, olhava para ela com amarga franqueza, sem a nota de ironia que costumava marcar seus gestos.

– Sei que não sou a pessoa que você mais queria ver neste momento, mas vou ter que servir. Me conta, Liliana... o que é preciso fazer para que você desista? Nós te tratamos que nem lixo, fizemos com que encarasse suas piores falhas e ameaçamos sua vida por mais de uma vez. Você já poderia estar morta. Ainda não sofreu o bastante? Ainda não aprendeu?

Ela não respondeu. Seus olhos se estreitaram num esforço hercúleo para impedir a saída das lágrimas que ameaçavam sua compostura.

– Você não é má pessoa. Só assistiu demais à TV ou leu os livros errados. Pensa em tudo o que quer jogar fora, mas pensa direito, como nunca pensou antes. Se, no final, você não tiver mudado de idéia, não precisa me procurar. Só me chama que eu vou aparecer.

A garota de cabelos espetados se virou para ir embora. Mas deteve-se.

– Acredita em mim quando te digo, mocinha – falou. – Você ainda tem muito o que aprender sobre a vida antes de querer alguma coisa com a morte.

Marisa saltou.

E assim a história de Liliana se acaba, gente. Ela volta? Encontra-se com novos vampiros? Corre perigo? Alcança uma maior compreensão do valor da vida? Sei lá. A tendência é que ela continue por algum tempo a ser a parte mais ingênua e pretensamente onipotente de todos nós. Mas quem pode dizer com certeza?

Caia na Noite acabou, mas o Demo continua firmemente Sentado em Meu Ombro. Voltem sempre para conferir suas novas diabruras!

Na semana que vem inicia-se uma história diferente, arrancada do fundo do baú da minha pobre literatura. Uma família. Uma menina. Um casamento. Gerações entrelaçadas. Conflitos inenarráveis. Filosofia de telhado (vocês já vão saber o que é... rs). E tudo contado sob o olhar suspeito de uma vira-latas que da noite para o dia se torna gata de madame. Leiam tudo isso em Mia: uma autobiografia felina.


 

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