terça-feira, junho 07, 2005

Caia na noite: Capítulo 6

Vinte e três horas


Faltavam poucos dias para a chegada do verão, mas a noite estava fresca. Não pensara que poderia precisar de um agasalho e os pêlos de seus braços, brancos de água oxigenada, se eriçavam a cada brisa que varria os degraus diante do teatro, enquanto, na Zona Leste da cidade, sua mãe acreditava piamente que fora dormir na casa de Cristiane. Se acreditasse em Deus, rezaria para que a amiga não lhe telefonasse, comprometendo sua palavra; afinal, não se falavam desde a semana anterior.

23h em ponto no seu relógio de pulso. Fabiano sempre se atrasava. Alguns poucos transeuntes, indo ou voltando dos pequenos antros do centro da cidade, olhava-na, curiosos, e ela se felicitou por ter deixado em casa seu visual mais exuberante, ou alguém poderia tomá-la com uma prostituta. Poucas garotas ficariam sozinhas num local tão destacado e numa hora tão avançada.

Pensou em esconder-se em alguma sombra enquanto esperava, de forma que pudesse ver Fabiano chegar sem chamar a atenção de mendigos e bêbados, mas não achou nenhum lugar entre as estátuas enegrecidas do Teatro Municipal, que ainda dominava a paisagem daquela área que já fora uma das jóias da cidade.

23h20 e nem sinal do rapaz. Precisaria tomar um táxi para casa? Tinha dinheiro, mas e coragem? As superstições de Cristiane haviam-na afetado mais do que admitia. Taxistas são homens como outro qualquer. Podem ser loucos e criminosos como outro qualquer. Ligar para o pai, nem pensar. Para ele, ela estava na casa da amiga. Ainda teria tempo para pegar o metrô, mas a distância entre a estação mais próxima e sua casa não encorajava um trajeto a pé.

– Fabiano: é melhor você estar de carro! – murmurou, de si para si.

Foi quando ela o viu ao longe na porta da estação Anhangabaú. Em vez de caminhar até ela, fez-lhe sinal para que viesse ao seu encontro. Sem pensar duas vezes, ela correu até ele.

– Nossa, você demorou... – murmurou ela.

Ele apenas meneou a cabeça, desdenhosamente.

– Lilica... você é ainda mais bobinha do que eu pensei.

– Quê?!

– Que horas são? 23h30? Isso lá são horas de uma menina de família andar por aí sozinha? Ainda mais nesta região!

– Mas... foi você quem combinou assim!

– Exato! E você nem discutiu! Mas vamos.

Confusa, consternada, mesmo assim ela o seguiu pelas ruas. Não conhecia nada aquela região, por isso era melhor manter-se bem próxima a ele. Não sabia o que fazer primeiro, se devia repreendê-lo por tê-la deixado esperando, se devia pedir-lhe explicações, se...

Tinha a impressão de que estavam sendo seguidos. Teve medo que se tratasse de um ladrão, mas logo constatou que quem os acompanhava de perto era, uma vez mais, a garota do restaurante. A namorada de Fabiano foi-se aproximando sem pressa, num passo leve e despreocupado, até caminhar lado a lado com ele, não deixando de fitar Liliana com o interesse das crianças pequenas ao encararem estranhos na rua. Apenas os três estavam ali.

– Qual é o nome dela? – perguntou Liliana num sussurro temeroso, mal movendo os lábios, como um ventríloquo. A garota lhe metia um estranho receio.

– Marisa. Mas não precisa cochichar.

– Você me chamou de boba. Por quê? Eu fiz tudo como você disse.

– Bom, Larissa, é esse o seu problema. Você fez tudo como eu mandei desde o começo. Guardou o cigarro, tirou a lente de contato, daí pintou o cabelo de uma cor comum e veio pro centrão nesse horário absurdo, sozinha, sem nem ter certeza de que eu cumpriria minha palavra. Percebe o que estou dizendo?

– Não...

– Seu julgamento é péssimo! Em nenhum momento você me questionou de verdade. Não pensou na sua individualidade, nem na sua própria segurança. Estava louca para agradar, feito um cachorrinho. E ainda acredita que é autêntica. Sabe, ser autêntica não é usar um cabelo diferente e uma roupa exótica, é fazer tudo isso só se você tiver certeza de quem você é e do que quer da vida.

Diante do olhar desolado da garota, Fabiano, inalterado, reclinou-se junto a seu ouvido e falou, em tom de confidência:

– A Marisa disse que você tem uma personalidade fraca e suscetível e que vai levar alguns anos para adquirir firmeza de objetivos, se é que um dia fará isso. Não dá pra dizer já porque você ainda é muito imatura. Não conseguiria agüentar o nosso tranco...

– Fabiano...

– ... Então não vai rolar, sinto muito.

– Mas isso é ridículo! É um absurdo! – Liliana, indignada, angustiada, procurava palavras para sua defesa. – Você não pode fazer isso comigo! Não agora que já vim tão longe. O que é que ela sabe de mim? Ninguém sabe nada de mim, vocês não me conhecem! Eu sei muito bem o eu sou e o que quero! É só me dar uma chance e vocês vão ver, todo mundo vai ver!

– Rebeldia demais, causa de menos. Está bem, então, Lila: o que é que você quer de verdade?

– Eu quero... poder fazer coisas extraordinárias!

– Então vai estudar! Ou junta umas amiguinhas, funda uma ONG para salvar golfinhos ou reciclar lixo. Vai servir sopa aos sem-teto, visitar velhinhos e crianças abandonadas em instituições. Ou bota uma mochila nas costas, vai viajar, conhecer o mundo, crescer como pessoa. Isso, sim, é extraordinário. Acorda para a vida!

– Eu não estou aqui para receber lição de moral de você!

– Meu, você é burra demais! Burra até o osso! Você é o perfeito protótipo dessa geração anestesiada por videoclipes e viciada em bate-papo virtual, conectada a tudo menos ao mundo real. Você não está pronta, será que não entende?

– Eu nasci pronta! – Liliana fez Fabiano piscar com as gotículas de saliva que saíram de sua boca, tamanho o furor com que defendia sua posição. Buscando superá-lo, pôs-se à frente dele, instintivamente, detendo a caminhada do grupo, enquanto falava: – Você não entende! Mas ninguém entende mesmo. Eu sempre fui diferente, sempre ansiei por algo especial... que me tirasse desta condição miserável, limitada...

– Você quer dizer humana.

Era Marisa quem a interrompia e a quem Liliana se dirigia agora:

– Humana é tudo que eu não quero ser!

Como se não a tivessem escutado, Marisa e Fabiano passaram por ela, cada um por um lado, e continuaram a subir uma rua. O rapaz olhou para trás com pouco interesse:

– Você vem ou não?

Sem pensar, correu para acompanhá-los.

Na próxima semana, conheça os segredos dos... Cantos escuros.


 

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