sexta-feira, junho 24, 2005

Caia na noite: Capítulo 9

Imortal, afinal

Comentários indecifráveis. Outra língua?

Risadinhas. Quem era?

Sentia-se zonza. Estaria drogada?

Os olhos se abriram com dificuldade para o céu de nuvens purpúreas. Era quase dia. Liliana estava deitada no chão. Num movimento brusco, um rosto pintado de sardas e cercado de cabelos amarelos surgiu diante dela.

– Acorda pra cuspir – mandou Marisa. Ela sorria com simpatia, e isso era estranho.

Liliana se ergueu com a graça de um filhote de girafa recém-parido. Escorou um joelho no outro. Todos os seus membros estavam bambos.

– Como se sente?

– Eu... não sei.

– Fecha os olhos. Respira.

Ela obedeceu, automática. Inspirou e expirou o ar diversas vezes até começar a se sentir confortável dentro do próprio corpo. A sensação era boa. Melhor do que nunca.

– Agora, como se sente?

– Eu tô bem. Mas... o que aconteceu?

– Não lembra?

– Não. – Estava confusa, tentando emendar suas memórias. Não sabia o que ocorrera no alto do prédio antes de perder os sentidos, nem como podia ter desmaiado. Mas ainda estava no mesmo lugar, acompanhada de Marisa e Fabiano, e a atitude de ambos parecia completamente alterada. Como tudo era confuso...

– Você pediu – respondeu a loura. – E nós demos.

Liliana compreendia. Tateou o pescoço. Claro, deveria haver dois orifícios perfeitamente redondos ali. Buracos feitos por um par de dentes afiados! Pelo menos, imaginava que devia ser assim...

– Cadê as marcas?

– Que marcas? Não fica marca nenhuma. Você mudou. Não percebe? Respira, olha para tudo, sente a mudança no mundo ao seu redor e em você mesma.

Fabiano surgiu de trás dela e resumiu o que Marisa dizia:

– Agora, você é o que nós somos. – O rapaz riu e a segurou pelos ombros. – Sorria, menina. Você venceu! É uma de nós e a noite é sua. Vamos! Logo vai amanhecer.

– Mas...

– Vamos! – repetiu ele, matreiro, e afastou-se.

Antes que a garota pudesse questioná-lo, Fabiano correu para a borda do prédio e saltou. Entregou-se como um suicida, mas não caiu como um. Foi o pulo do gato, longo e gracioso.

Boquiaberta, Liliana o viu pousar com leveza num edifício ao lado, mais baixo. Ele sorria, convencido, galã de cinema, bonito como o diabo.

– Você também pode! – ouviu-o gritar.

Ela ouviu passos rápidos atrás de si e voltou-se a tempo de ter um rápido vislumbre da outra, que correu, também, em direção ao precipício. Marisa saltou e abriu os braços, como se planasse, pequena, esguia, uma garça loura que pousou ao lado de seu par, no prédio.

Lágrimas comovidas embaçaram as vistas de Liliana. Aquilo era lindo e improvável. Queria ir também. Fabiano acenava para ela.

– O que você tá esperando? – gritou. – Vem! Você não quer ser imortal? Este é o seu momento! Você pode tudo, Lilith! Cai na noite!

Era do que precisava. Recuou vários passos e parou. Era agora. Ela correu, veloz como nunca, e pulou. Entregou-se como uma suicida... e caiu como uma. A calçada foi ficando mais próxima, o estômago gelado, as lágrimas escorrendo para cima, varridas pelo vento, a boca aberta num grito sem voz e as gargalhadas de um homem e uma mulher gozando da sua queda.

Na semana que vem... a conclusão no décimo e último capítulo de Caia na noite: O povo da noite!


 

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