terça-feira, julho 12, 2005

Mia: Capítulo 2

Para alguns, a proposta de Mia - uma gata que narra a vida de uma família sob seu peculiar modo de ver o mundo - pode parecer extremamente ingênua. Mas esta autobiografia felina ainda tem muito o que revelar.

Uma vez eu disse que meus textos são muito simples e diretos, quase não admitindo subleituras. Pois bem, desta vez, me afasto um pouco de mim e peço que compreendam Mia tão metaforicamente quanto desejarem. Em contraste com os mimos e afagos que fazem parte do mundo da gata doméstica, a raiva, a inveja, a rejeição e a maldade humanas são avaliadas por uma protagonista inumana. A despeito de seu próprio egocentrismo, Mia perceberá muito em breve que o mundo lá fora não gira ao seu redor. Dura lição para os mimados. Quanto a Emma...

Bom, pessoas. Leiam a novela. Avaliem por si mesmos. É o melhor conselho que posso lhes dar.

Grata, sempre.

Camila


O vínculo que se manifestava a todo momento entre os menores e os maiores fazia-me recordar qualquer coisa que até hoje não sei definir com certeza. Jamais tive um pai, mas sei que tive uma mãe e também tive irmãos. Sei que era uma mãe porque tratava de mim como podia durante o pouco tempo em que estive junto dela. Sei que os outros eram irmãos porque disputavam comigo sua atenção. Isto é um irmão: um sujeito inoportuno que deseja o mesmo que você e procura roubar aquilo que é seu. Ainda assim, é possível estimá-lo, parece-me. Não tive chance de averiguar isso. Qualquer coisa me apartou daquela primeira família, mas não lastimo o fato. Até onde pude ver, estava bem melhor entre os homens.

Mãe era um tanto reservada, mas jamais maldosa. Falava pouco comigo. Punha a minha comida no prato mesmo antes de eu lha requisitar e gritava quando eu me aninhava na enorme e tentadora cama onde ela dormia com Pai ou quando arranhava as almofadas do sofá. Por mais que façamos uma coisa, é impossível que os homens compreendam que não devem nos impedir. Eles teimam em nos retirar dos nossos lugares prediletos.

Pai me permitia melhor exercer minha personalidade. Nós dois gostávamos muito de dormir. Ele costumava provocar-me com qualquer objeto interessante – um lápis, uma fita de pano –, eu fingia que o arranhava e esse era o nosso jogo. Até permitia que me fizesse festas na barriga. Ele passava o dia ausente e retornava quando a cidade lá fora já estava escura. Eu costumava ir recebê-lo à porta, o que o fazia sentir-se muito especial, segundo creio.

Todavia, Emma é quem era realmente especial. Dentre todos, tinha o melhor cheiro – um cheiro de coisa nova e revigorante. Comunicava-se bem, com olhares e gestos. Foi ela quem me levou a gostar do sorriso humano. Dizia-me uma porção de coisas que nem sempre eu compreendia, mas seu tom de voz me mostrava o que queria que eu soubesse. Também não penso que eles compreendessem tudo o que diziam uns aos outros. Pela maneira com que pronunciavam os nomes, podia-se interpretar o que desejavam ou sentiam. Era muito fácil, mas eu simulava inocência quando ralhavam comigo, convencendo-os de que não entendia uma só palavra. Logo me cediam sua acessível piedade ou uma última queixa, e eu me livrava do castigo maior.

Emma cansava-se facilmente de suas bonecas, preferindo, geralmente, brincar comigo. Não é de se admirar, já que as bonecas eram estranhas pessoinhas imóveis, que não davam atenção à sua conversa. Quando Emma ia lavar-se, levava-me consigo para o banheiro. Senão, eu ia até lá com meus próprios pés. Conversávamos o tempo todo. Falava comigo bem mais do que com as outras pessoas da casa, e quer-me parecer que preferia minha companhia à de qualquer um. Não que isto me impressione. Afinal, sou uma ótima ouvinte. Somente nisto posso ser equiparada aos cães.

Não tenho certeza do motivo pelo qual os homens usam roupas para tapar suas peles. Talvez seja porque tenham tão poucos pêlos no corpo que sintam frio a todo momento, como num inverno interminável. Achava interessante observar sua freqüente troca de roupas. Despiam-se e vestiam-se de novo pelo menos uma vez a cada dia. Não tinham nenhum prurido quanto a estarem nus diante de mim, mas achavam intolerável a idéia de o fazer diante uns dos outros! Será que tinham medo de descobrir que eram todos iguais?

Os anos os tornaram muito diferentes do que eram no começo.

Enquanto eu passara de menina raquítica a elegante dama de pêlos sedosos e barriga satisfeita, Van e Mar eram já quase homens feitos – e bem mais quietos –, Pai perdera uma boa parte dos poucos cabelos que ainda tinha na cabeça, Mãe se parecia bem mais com um barril e Emma crescera notavelmente: era agora uma fêmea plenamente crescida, com seus cabelos castanhos, encaracolados e muito ajeitados, e passava fora de casa mais tempo do que eu gostaria. Com esta exceção, não houvera em minha vida mudança digna de nota. Essencialmente, eu continuava vivendo da mesma forma como meus ancestrais devem ter vivido quando primeiramente se depararam com homens que reconheceram sua grandeza.

Aqueles anos de ociosidade e gula não fizeram senão acentuar meu temperamento exigente. Mesmo assim, ninguém se podia queixar de que eu fosse preguiçosa demais: era brincalhona, embora impaciente e, de certa forma, agressiva. Não tanto quanto certos colegas de telhado – gatos que lutavam ferozmente pela posse de seus territórios –, mas considere-se que eu era uma gata doméstica, que não tinha de vasculhar o lixo das casas em busca da minha ceia e também não enfrentava o frio, a chuva e outras misérias.

Eu fui especialmente irascível no período em que desejei a companhia de outros gatos. Bem, minha família compreendia isto; cada um passaria por coisa semelhante algum dia – se já não o havia feito –, lidando com a necessidade de contato íntimo com os de sua própria espécie. Mesmo assim, mantiveram-me trancada na época, inimigos da idéia de que eu me promiscuísse com machos vadios. Não eram tão ingênuos quanto eu pensava e sabiam, tão bem quanto eu, que o produto final de meus requebros seria um bando de gatinhos encantadores. Acho que não queriam ter de dedicar a outros a afeição que me tinham. Posso compreender isso. Via-me oscilando constantemente entre a euforia e a depressão. Sou mesmo uma pessoa difícil. E tenho de admitir que, nesses dias, tornei-me insuportável.

No entanto, tão logo abrandou-se tal obstinação, eu me esqueci dela e obtive licença para voltar aos telhados. Um gato é um atleta e um explorador. Por mais que ame o trono do rei, nunca abandonará por completo as aventuras da senda dos vagabundos.

De qualquer modo, aquele ocasional desconforto não se repetiu. Lembro-me apenas de que fui levada até um certo homem, o qual fez-me dormir por meio de algum artifício inebriante. Foi um episódio muito estranho. Seja o que for que me tenha sucedido em suas mãos durante o sono, sei que despertei com a pele de minha linda barriga costurada e o certo é que não voltei a ter acessos de lascívia...

Emma continuava tão alegre como quando eu a conheci, embora muitas vezes eu a tenha pego a choramingar pelos cantos da casa. Lágrimas são coisas que acontecem com os olhos dos homens quando eles estão descontentes. Se bem que já vi pessoas chorando em momentos que não podem ter sido senão de felicidade. É mais uma das estranhas reações humanas diante da vida.

Emma sempre foi muito diferente de mim. Não sabia impor sua vontade às pessoas. Penso que a única vez em que a declarou abertamente foi quando contrariou a mãe e me trouxe para sua casa, de longe a melhor coisa que já fez. Talvez ela há tanto tempo não opinasse que as pessoas se haviam esquecido de que ela tinha desejos. Afinal, não podiam adivinhar.

Eu ia esfregar-me em suas pernas – não havia outro modo de perguntar-lhe a causa das lágrimas. Aparentemente, minha abordagem funcionava com tranqüilizante, pois ela me apanhava no colo e começava a falar comigo. Talvez me dissesse tudo o que não ousava dizer aos outros. Pouco depois, acalmava-se.

Um dia, Emma chegou em casa muito animada. Um rapaz vinha com ela, de mãos dadas. Seu nome, como soou-me, era Jo.

Ficaram um bom tempo conversando com Pai e Mãe, sentados na sala com xícaras nas mãos. Riram. O tal rapaz certamente foi muito apreciado. E Emma não veio falar comigo enquanto o indivíduo não se dispôs a partir.

Depois daquele dia, várias vezes vi o tal Jo entrar e sair da casa. Pai e Mãe gostavam muito de recebê-lo e Emma mais ainda de trazê-lo. Quando sozinhos, praticavam carícias que a meu ver não deveriam causar muito prazer. Ele parecia irritar-se com ela às vezes, quando o beijava por mais tempo do que lhe parecia adequado ou simplesmente dizia algo com que ele não concordasse. Parecia tão temperamental quanto eu – com a diferença de que jamais Emma teria de mim mostras de aborrecimento, mesmo que me incomodasse enquanto eu dormia. Mas, na presença de Jo, ela praticamente se esquecia da minha existência.

Um dos mais famigerados atributos felinos é o da inconstância. Em contrapartida, também somos conhecidos por nosso caráter ciumento. Em pouco tempo decidi que, a não ser pela ínfima possibilidade de o amigo de Emma mostrar-se delicado e amável para comigo, ele iria sofrer.

Raramente arrisquei aproximar-me dele; quando pela primeira vez o fiz, notei que tentou ser cortês, afagando minha cabeça. Escapei-lhe e cheirei sua mão. Não simpatizei com seu odor. Encarando-o bem, já vi que não conhecia nada sobre gatos e também não estava interessado em versar-se nesta admirável arte. Não queria nada comigo. Era o tipo de pessoa que eu ignoraria em qualquer outro caso, mas não nesse. Afinal, ele era a novidade no meu território e estava tomando algo que era antes unicamente meu – a atenção de minha preferida. E quem era ele para permitir-se tamanha audácia?

Descobri-me capaz de sentir rancor. Descobriria, mais tarde, maiores motivos para senti-lo e a inutilidade que isso era.

Não demorei a encontrar nos ares a previsão de mudanças.

Até então, não experimentara nada parecido. Deparava-me com uma nova sensação de que qualquer coisa me aguardava e que não haveria como fugir dela.

Um grave defeito humano é negligenciar, nas ocasiões mais importantes, a vontade dos animais com quem vivem. Eles nos incluem em planos dos quais não temos notícia até que nos vejamos irremediavelmente contaminados por suas decisões. Foi exatamente deste modo que eu vim a saber sobre a união de Emma e Jo.

Como Pai e Mãe haviam feito há muito, eles reuniram seus pertences e suas vidas. Todos estavam muito agitados e, ao que parecia, felizes. Entre lágrimas e risos, os humanos manifestaram plenamente o absurdo de sua natureza. Então, atiraram as malas ao carro e eu às mãos de Emma. Meteram-me na apertada gaiolinha que antes haviam usado para levar-me ao homem que costurou minha barriga e, por um instante, temi que pretendessem costurar mais alguma coisa. Mas logo compreendi que Emma estava me levando consigo. Fomos nós duas. Nós e aquele invasor em nossas vidas perfeitas.

O nossa nova residência ficava no último andar de um edifício cinzento, pequeno e antigo. Era muito bonita por dentro, embora não fosse tão grande quanto a outra e certamente estivesse muito afastada de tudo o que eu conhecia. Mas era mais do que o bastante para uma gata, uma mulher e um homem.

Fiquei perplexa ao adentrar o lugar desconhecido, consciente de que poderia nele passar o resto de meus dias. Mas a adaptação nunca foi impossível para mim. Depois que a alcancei, minha vida prosseguiu sem grandes incômodos, mas eu dormia sozinha num aconchegante cesto que Emma, precavida, forrara com seu velho cobertor para mim. Talvez porque quisesse desfrutar em particular da intimidade adquirida com Jo. Talvez porque soubesse que eu me recusaria a dividir um leito com ele.

Não importava que nós reservássemos um ao outro nossa quase total indiferença. Ele não gostava de mim, eu não gostava dele e éramos conhecedores disso. Tínhamos um pacto de inimizade. Até este ponto, compartilhar a casa era tolerável. Ele estava quase sempre fora dela e, durante este período, eu podia reinar e ser razoavelmente feliz.

Quando Emma começou a inchar, percebi que íamos ter uma visita permanente.

Na semana que vem... já sabem. Aqui.


 

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