segunda-feira, julho 18, 2005

Mia: Capítulo 3

Eu nunca passara por tal experiência, mas é claro que sabia o que era uma fêmea prenhe. Confesso que temi maiores ameaças à minha autoridade. Tornei-me insegura e requisitava atenção a todo tempo. Só não esperava que Jo fosse justamente aquele que procuraria satisfazer-me. Na verdade, por conselho de Emma.

– Querido, Mia tem estado muito carinhosa. Acho que ela sabe que vai ganhar um irmãozinho.

Aquilo o enfastiava.

– Que irmão, Emma, a gata não é sua filha... Cuidado com este amor. Não fique distraída depois que o menino nascer, ou pode acabar amamentando a gata em lugar dele.

– Não seja bobo. Ah, olhe para essa carinha. Por que você não brinca um pouco com ela?

Eu protestaria se previsse que ele seguiria a sugestão. Com toda a delicadeza que era peculiar a criaturas da sua qualidade, ele largou a lata de cerveja vazia na mesa ao lado do sofá, passou a mão por baixo do meu corpo e me ergueu no ar, pousando-me bruscamente sobre suas pernas. De ventre para cima. O homem queria a morte!

Arranhei-lhe a mão e ele, com um gemido, levantou-se, fazendo-me cair no chão. Nem Mar e Van, quando pequenos, poderiam ser tão estúpidos.

– Droga! Ela me arranhou!

– Você não combina mesmo com animais, querido.

Talvez porque ele mesmo fosse um animal, e dos mais imundos. Emma poderia ter se casado com um rato. Ao menos, eu me divertiria com ele. Estava farta de Jo.

Para não inspirá-lo a me castigar, saltei pela janela e fui respirar o ar da noite na escada de incêndio.

Ali, eu tinha muito mais liberdade do que na antiga casa, mas isto não voltava minha preferência à vida que levava então. Era nostálgica até o extremo da capacidade felina, que não é invejável. Minha memória é muito seletiva: interessa-se quase que só por odores e outros detalhes familiares e práticos, como as pessoas e coisas das quais gosto ou não. Naquele momento, agachada sobre o corrimão que precedia o primeiro lance de degraus, eu procurava lembrar-me de minhas situações prediletas na antiga casa.

Van e Mar acotovelando-se no corredor, arrastando tiras de pano para que eu os perseguisse. Mãe seduzida pela minha aparente inocência, esquecendo-se da vassoura com que pretendia dar-me uma lição de disciplina. Pai coçando meu pescoço, sem dar importância às suas calças que eu enchia de pêlos. Emma ainda jovem, sentada comigo nos joelhos diante do espelho. Eu perambulando no escuro, ao ressonar da casa, escolhendo a cama onde iria passar a noite, acomodada junto a uma curva de cintura ou um braço acolhedor.

Meus ouvidos jamais me deixaram à deriva. Voltei-me subitamente para um outro solitário que se aproximava, subindo a escada em direção ao mesmo corrimão no qual eu me encontrava, cauteloso, mas sem vacilar. Era de um branco poluído de cidade, de pêlos híspidos, esbelto e lento. Um sem-teto como eu já fora. Devia ter passado toda a sua existência nas ruas – julguemo-lo por seu aspecto. E era um tanto idoso.

Primeiramente hostilizei-o com olhares. Um estranho é sempre um estranho. Em geral, eu teria rosnado à primeira vista do intruso. Cordato, ele manteve a distância. Não devia ter um nome. Eu estava inteiramente acostumada a nomes, mas não o suficiente para esquecer-me de que eram invenções dos homens, das quais os animais sem domicílio não partilhavam. Assim como as palavras. De modo que ele jamais precisaria delas para dizer-me o que disse com seu olhar firme:

– Você pode não me conhecer, mas eu já estava aqui bem antes da sua chegada.

Olhou para dentro da minha janela. Emma e Jo estavam sentados no sofá.

– Ora, você tem humanos. Parecem ser dos bons. Não?

Não senti vontade de agredí-lo. Pareceu-me antes um bom sujeito. Confesso que me apiedei do seu aspecto miserável. E há muito tempo eu não me relacionava com um do meu tipo de qualquer forma que fosse.

– Ela é das boas – respondi-lhe. – Ele é um completo imbecil.

– Bem, então não posso dizer até que ponto você é afortunada por tê-los. Qual dos dois dá as ordens? Normalmente, um deles acha que manda.

Pensei um pouco antes de assumir aquela intragável verdade.

– É o imbecil.

– Que lástima, jovem.

– A convivência ainda não se tornou impossível.

– Aproveite enquanto são seus. Quase todos têm vida longa. Mas, às vezes, partem antes de nós.

– É melhor que desapareça agora, velho. Se ele o vir aqui, quererá dar-lhe a sova da qual escapei. Tem inveja de nós.

– Está entendido, este é o seu território... Fique com a casa, mas deixe o teto para mim, sim? É o meu predileto.

Foi-se escada abaixo. Admirei-me de que um gato, vivendo da vadiagem, pudesse ser tão longevo quanto aquele. Mas que podia supor eu, que nada sabia de sua história?

Eu nunca ia receber Jo à porta. Houve, contudo, uma noite em que não pude deixar de fazê-lo. Ele vinha com Emma e eles traziam uma novidade.

Eu passara antes disso um bom tempo sem ver Emma. Ela recomendara ao marido que, em sua ausência, não se esquecesse de me alimentar e de ser bom comigo. É claro que ele acatou o primeiro conselho. Não ia querer que ela se deparasse com sua querida gata morta por desnutrição. Quanto ao segundo conselho, não posso dizer que não tenha tentado seguí-lo. Não me dirigiu palavra ou olhar ferino durante todo o tempo em que ela esteve fora, o que era muito mais gentileza do que se podia esperar dele.

De modo que, quando ele a trouxe de volta, fui dar-lhes as boas-vindas tão logo ouvi a chave girar na fechadura.

Nos braços de Emma repousava qualquer coisa de porte semelhante ao meu, envolvida por um lençol. Logo que se sentou no sofá, fazendo ruídos delicados para o seu pacote, chamou-me para exibir-mo. Saltei para o seu lado e vislumbrei aquela criatura plenamente pobre de pêlos, trêmula e enrugada, que era o seu filhote. Então, disse a Jo:

– Feche a janela. Esta brisa pode fazer mal ao bebê...

Ele fez o que ela pediu, mas, em seguida, veio tomar-lhe a criança.

– A brisa não lhe fará nada. Olhe para ele! Um menino forte. Tão forte quanto o pai.

E ergueu-o bem alto nas mãos. Mas o filhote começou a chorar terrivelmente como só um filhote humano faz.

– Não é nada, não é nada... Isso. Pegue-o, Emma. Vou abrir uma cerveja para comemorar.

– Veja bem, só uma...

Aos poucos vi que a presença do bebê era mais fascinante do que ameaçadora. E ele, menos digno de cólera do que de piedade. O seu nome – porque era muito pouco falado naquela casa – eu não pude aprender bem. Passei a pensar nele apenas como o Pequeno. Por mais que crescesse, nunca teria de mim outro título. Era uma coisinha pálida e de poucas palavras. Não me afagava. Tampouco molestava-me.

Nem sei se era capaz dessas coisas. De qualquer modo, depois de ele se tornar um pouco maior e mais forte, aproveitei-me de sua passividade e encontrei um bom companheiro para as noites mais frias. É claro que trancavam a porta do quarto para evitar minhas invasões, mas há muito tempo eu sabia que, para abrí-la, bastava saltar sobre a maçaneta e girá-la.

Disse que ele se tornara mais forte, mas não era exatamente o que Jo esperava de um filho seu. O Pequeno cresceu o bastante para mostrar-se ativo e interessado no mundo, como qualquer outro filhote, mas identifiquei nele uma estranha atitude diante de tudo. Eu já vira outras crianças humanas e elas eram ruidosas e agitadas. Mas ele apresentava constante abatimento. Logo largava das coisas que despertavam sua atenção. Movia-se vagarosamente. Por tudo isso e por observar os olhares piedosos que Emma lhe oferecia e as olhadelas impacientes com que Jo o desaprovava, constatei que havia algo de muito errado com ele. Foi isso o que, pouco a pouco, tornou o ambiente onde vivíamos menos suportável.

– Ele não é normal, Emma, você sabe disto. É frágil. Segura tudo tremendo, nem parece um homem. E na idade em que está já devia saber falar melhor!

– Pelo amor de Deus, o que quer que eu faça?

Deus. Tenho certeza de que era um nome, mas nunca soube a quem se referia.

– Você é a mãe dele. Eu não passo o dia inteiro fora de casa? Não sustento esta família? Você não pode ao menos educar melhor o menino? Ele já é doente. Quer que seja também um desajustado?

– Eu não tenho culpa – alegava ela. Lá vinham novamente aquelas lágrimas. Estavam se tornando tão comuns que eu já não tinha dúvidas sobre sua causa. – Eu dou a ele toda a atenção que posso. Ele... tem algum problema, você sabe. Nasceu assim. Talvez nós possamos mandá-lo a uma escola especial...

– E mais isto: ele também não é inteligente.

– Eu não posso fazer nada, seu estúpido!

Neste momento, ele a fustigou com uma expressão que eu nunca havia visto. Parecia que atribuía a ela a culpa por todas as suas insatisfações. Como podia uma criatura ser assim egoísta, que fazia frente até mesmo ao mais arrogante dos felinos? Comparando-me com ele, descobri em mim mesma um sentido de generosidade e compaixão que me faria renegada pela minha própria raça. Até conhecer Jo, eu imaginara todos os seres humanos dotados de um talento para amar uns aos outros e uma boa vontade quase canina. Concluí, assombrada, que eu sabia muito pouco sobre sua índole simples e imperturbável. Hoje, sei que são tão volúveis e indisciplinados quanto nós próprios, ou mais. Jo foi, de fato, o primeiro ser humano perverso que já tive o desprazer de conhecer.

Ele avançou na direção dela e, por um momento, julguei que fosse agredí-la. Mas deteve-se e a maneira como olhou para Emma fê-la baixar de imediato os olhos e cobrí-los com as mãos.

– Todos na minha família são inteligentes e fortes – ele cuspiu. – Na sua, não posso saber. É uma vergonha!

Pela primeira e última vez em toda a minha regalada vida, desejei ser humana. Desejei o poder de gritar: Emma! Levante-se daí e reaja, arranhe-o, expulse-o! Valia-me mais estar vagando faminta pelas ruas do que viver naquela jaula onde nós duas e o pobre filhote éramos dominados por aquele macho desprezível. Ora, o que teria sido de mim se todos se deixassem iludir por minha aparente fragilidade, desprezando-me e condenando-me aos becos da vida?

Eu desejava ser humana. Ser humana e saltar sobre ele, empurrá-lo pela janela, vê-lo despencar pelo edifício até que o chão duro da calçada, lá embaixo, findasse sua existência.

Mas ele deixou a sala e ninguém ousou fazer nada.

A partir de então, jamais reafirmei meu apego a Emma, nem ela, tampouco, procurou-me. Não que eu ignorasse seu sofrimento, mas sempre quis que ela se desvencilhasse do homem, e, no entanto, via-a decadente e anulada por aquele condicionamento auto-imposto. Acho que eu não queria mais o amor de alguém assim.

Ela não era mais a Emma de minha infância, era uma fêmea dobrada e emudecida e o mérito da sua desgraça era todo do macho que ela escolhera como pai de sua prole. O mito da minha preferida estava obsoleto. A única coisa que eu queria era preservar a honra de sua memória, vingando-me de algum modo do seu violador. Minha vaidade o pedia. Mas eu era pouco além de uma observadora.

Na semana que vem... o penúltimo capítulo de Mia. O quê? Já? Bom, eu avisei que era uma novela rápida. Estejam aqui. Divirtam-se!


 

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