quarta-feira, julho 06, 2005

Mia, uma autobiografia felina: Capítulo 1

A primeira versão de Mia, uma autobiografia felina foi escrita em janeiro de 1999, quando eu contava 18 anos, e está carregada da ingenuidade que imperava em minha vida naquela época e que, por que não admitir, não diminuiu muito até hoje.

Mia passou por uma revisão de conteúdo em 2003 e desde então permanece intocada. Sempre há aquilo que mudaríamos. Sempre há aquilo que deixaríamos como está. Mas nunca há tempo ou mesmo razão para embarcar numa obra que não termina jamais, não é mesmo?

Para quem acha que Caia na noite teve capítulos muito curtos e se estendeu demais, uma boa notícia: Mia tem apenas 5 episódios, via de regra bastante longos. Portanto, espero que se divirtam com a noveleta e não economizem críticas.

Contra-indicado para pessoas más e feias que não gostam de gatinhos. Contra-indicado para quem não gosta de surpresas.

Pois vamos a isso.

Ela nunca soube de onde vim, se eu já tivera um outro lar ou um outro amigo. Sempre me fez muitas perguntas, mas nunca esperou de mim respostas. E nada disso fez diferença.

Ocorreu há muito tempo. Não saberia especificar quando. Não me importa o tempo que passa, mas a maneira como passa, e nunca as lições que me oferta, mas somente o prazer que pode me proporcionar.

Mas prossigo: houve uma noite na minha vida de pobretona em que ela me encontrou. Era lépida e jovem. Caminhava com uma mulher robusta, de corpo muito sólido – quase um barril de carne – que a puxava apressadamente pelo braço.

Nada pôde abalar seu interesse quando encontrou meus olhos na escuridão do beco, onde eu tremia. Seu rosto miúdo iluminou-se todo com o lampejo que só o mais jovens sabem lançar.

– Olha só, mãe – disse ela, com o dedo esperançoso em riste para mim.

– É um gato de rua, Emma. Deve ser arisco e cheio de doenças. Vamos embora.

Ela ignorou a mulher e veio a mim com uma graciosidade pouco comum entre os homens. Não sei se posso dizer que ela me escolheu ou se fui eu a escolhê-la. Mas minha vida de filhote esquálido e pulguento, apesar dos protestos de terceiros, chegou ao fim nos braços adolescentes de Emma.

Comparada à escuridão incerta das ruas, com suas crianças sentenciadas à orfandade precoce, a casa de Emma era um paraíso. Minha admiração diante do calor caseiro e de todas aquelas brilhantes luzes artificiais me valeu o primeiro de muitos elogios, logo que a porta da casa se fechou atrás de mim:

– Que olhos enormes tem você, neném! Mãe, veja que olhos lindos ele tem.

Houve algazarra dos irmãos menores quando ela me introduziu à família:

– Onde encontrou este gato?

– Que magro! E é bem feioso, não?

– Eu acho que ele está doente.

– É só um filhote, seus paspalhos – protestava Emma. – Meu gato. Não é feio nem doente, e vocês estão com inveja.

Acho que ela não tinha idéia do que era acariciar um gato. Causava-me mais desgosto do que deleite tentando passar a mão sobre minhas costas e ao mesmo tempo afastar-me dos dois rapazolas.

– É menino ou menina?

Nessa hora levantou-se o homem maior da casa, até então sentado imponente e pachorrento na sua poltrona, com um jornal nas mãos. Seu vulto atemorizou-me de início. Como os mais astutos dentre os do meu tipo, eu já sabia reconhecer, após breve exame visual, os que iriam me amar. Não é algo que aprendamos com nossos genitores ou em algum livro de ensinamentos, como os homens insistem em fazer. Nós não adquirimos um profundo conhecimento das coisas da mesma maneira que eles. Simplesmente passamos a sabê-las. Está na nossa natureza.

Ele se aproximou de mim, virou-me de barriga para cima e, naturalmente, esperneei. Nada é mais desagradável do que mostrar o ventre a um desconhecido. Perco todo o meu equilíbrio nessa posição e, por conseqüência, o controle da situação.

Meu suplício foi curto. Uma mera olhadela.

– E então? – perguntaram os circunstantes.

– É uma fêmea.

Finalmente compreenderam. Eu, que até então não me dirigira a ninguém, ergui meu vergonhoso miado de felino raquítico. Julguei que Emma fosse me engolir com seus carinhos melodramáticos.

Então, eu estava em casa.

Aquelas dóceis pessoas não sabiam o que fazer comigo. Era óbvio que não estavam acostumadas a ter um líder natural no lar, isto é, um gato. Não que sejamos explicitamente eleitos como líderes ou tenhamos o hábito de dar ordens, mas nossa condição nativa sempre nos consegue o privilégio de ver tudo funcionando em nosso benefício, desde que empreguemos para tanto uma fração de nossa inteligência. Até minha chegada, a tarefa de chefiar parecia pertencer ao homem maior, mas mesmo ele rendeu cordialmente suas atenções a mim. Estavam fascinados com cada uma de minhas idiossincrasias.

Adaptei-me à placidez do confinamento a às cerimônias do convívio com outros seres em uma velocidade que quase me fez esquecer-me de quem era. Uma criatura caprichosa e indomável – mas venal ante a oferta de afago, comida e cama. Certamente eu aproveitava os ensejos de içar-me ao telhado, lançando-me a outras janelas e conhecendo outras famílias. Uma filha da rua, como tantos outros menos afortunados do que eu, que, sem modéstia, sempre fui um belo espécime, o que certamente me rendeu o primeiro olhar de Emma. Sua família compreendeu a razão de sua admiração por mim após o execrável banho a que fui submetida no dia seguinte à minha chegada.

Que crueldade fazer um indefeso filhote passar por aquilo. Fizeram isso muitas vezes depois, a despeito de minhas tentativas de fuga. Mas admito que naquela primeira ocasião eu estava mesmo precisando de mais do que um de meus banhos de língua.

Emma insistiu em mostrar-me o resultado daquele cuidado. Após me enxugar como podia numa toalha, segurou-me diante de algo que eu até então desconhecia, que vinha a ser, conforme deduzi, minha própria imagem. Estranhei aquela superfície plana na qual encontrava a cara de um outro gato, magro, preto e hirsuto, com imensos olhos amarelos.

– Aí está você. Isto aí é um espelho, não vá se assustar.

E ela ria. Nunca compreendi a razões do riso. Alguns humanos riem mais do que outros, mas absolutamente não vejo qualquer motivo para esta manifestação barulhenta, que surge de suas bocas em horas tão diversas.

Talvez façam isso por distração, sem querer ou para interromper o silêncio, que eles gostam tanto de desrespeitar. Os homens fazem muito ruído, mas prefiro-os aos carros. Por mais que saiba que os carros, diferentes dos cães, não mordem e tampouco têm opinião própria, nunca deixarão de me assustar. Já os vi causarem estragos inenarráveis às pombas idiotas que bicam a rua e até mesmo a gatinhos desavisados. Só me sinto segura quando estão quietos, encostados às calçadas. Nada faz com que um gato deixe de temer aquilo que ele decide temer, como nada o convence a fazer o que ele não quer.

Pois bem. Indiferente às minhas especulações, mas nunca à minha presença, pouco a pouco, a família foi aprendendo a me satisfazer. Não poderia querer mais nada além da calma que os dois menores me negavam. Quando eu tentava dormir, buliam comigo com a mesma curiosidade com que as crias de uma gata olham e cheiram tudo o que existe, após abrir os olhos. Eu tinha vontade de espancá-los. Faziam a todo momento perguntas ao homem maior:

– Se nós a chamarmos com um assobio do outro lado da casa, ela vem?

– Não, mas se fosse um cachorro, quem sabe...

– Ela abana o rabo quando está feliz?

– Não, meu filho, só os cachorros fazem isso, não os gatos. Se a cauda dela está se mexendo, ela deve estar zangada. Deixe-a em paz.

– Ela morde?

Eu estava prestes a responder por mim mesma quando o homem se ergueu e veio em socorro de minhas futuras vítimas, apanhando-me nos braços.

– Vão brincar com outra coisa, meninos. Os gatos só gostam de brincar depois de dormir.

Poucas vezes um homem disse algo tão sábio. Somos inteiramente diferentes dos cães. Não temos a necessidade de viver em matilhas e não temos de eleger líderes que não nós mesmos. Se eu fosse um cão, ter-me-ia deixado impressionar pelo tamanho e pela autoridade do homem maior, oferecendo-lhe minha lealdade e mostrando-lhe o meu ventre, em sujeição. São serviçais natos dos homens, embora saibam, como ninguém – nem mesmo eu – manipular a vontade dos humanos, com seus olhos lacrimejantes e suas caudas inquietas. Estão sempre com as bocarras abertas e as línguas de fora, rindo até babar da cara dos homens, sem que estes o percebam. Não duvido que tenham bons corações, mas os cães são, na verdade, interesseiros e volúveis, e é por isso que muita gente os prefere. Nós, bichanos, somos francos demais para os sentimentos frágeis de certas pessoas.

Os humanos têm dificuldade em compreender o que se quer deles. Quase não sabem se comunicar sem a emissão de ruídos, a não ser quando sacodem as mãos, o que também é desairoso. Às vezes, fazem as duas coisas ao mesmo tempo, criando um resultado cômico e, depois, tedioso. De qualquer modo, gosto quando falam comigo. Sempre o fazem mais gentilmente do que quando se dirigem uns aos outros, o que se deve obviamente ao respeito que me guardam. Agradeço, por minha vez, ronronando ou miando, algo que até mesmo eles podem entender.

Percebendo que suas relações com o mundo se estabeleciam à base de barulho, passei a miar sempre que desejava sua companhia. Nem sempre podiam me atender, mas faziam o possível, e acho que se sentiam queridos por mim. É verdade que não eram muito inteligentes. Contudo, à sua maneira desajeitada, eram muito amorosos. Até os dois menores. Com o tempo, aprendi a tolerá-los e, depois, com a vinda tardia da maturidade, as duas pestes tornaram-se bons companheiros.

Não treinei minha memória para se ocupar com os inúmeros sons que os homens produzem. É claro que tenho coisas melhores com as quais ocupar-me. O curioso, no entanto, é que notei que também usam sons específicos para definir uns aos outros e às coisas. São nomes. Passei a saber quando se referiam às pessoas da casa e aos assuntos da minha alçada, como comida e banho.

Emma foi o primeiro nome que aprendi. Os menores tinham nomes que soavam como Van e Mar ou coisa que o valha. Os maiores eram Pai e Mãe para as crianças, de onde supus que estas denominações servissem para as pessoas que tratavam de nosso bem-estar e folgança – logo, eram Pai e Mãe para mim também. Pai e Mãe chamavam um ao outro por uma porção de nomezinhos que me pareciam fruto da natural indecisão humana. Era horrível. Pareciam não saber o que queriam um do outro, e penso que de fato nunca souberam. Mesmo assim, ainda estavam juntos quando me separei deles e penso que ficaram juntos até o fim. Seu senso de conveniência era tão apurado quanto o meu.

Quanto a mim, desde que ali pisei, fui chamada de Mia. É um bom nome, que irei manter até segunda ordem.

Não perca, na semana que vem, o segundo capítulo desta pequena saga felina!


 

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