segunda-feira, agosto 01, 2005

Mia: Capítulo 4

Os humanos têm um estranho apego a coisas inúteis. Certos objetos despertam neles maior interesse do que os próprios seres vivos. Têm enorme cuidado com determinadas miudezas, como conjuntos de chá de louça de não-sei-onde, com aquelas xícaras que mal conseguem segurar, de tão pequenas. Só servem como ornato para os seus móveis – outro estrambótico costume humano é colocar muitas coisas pequenas sobre coisas grandes com o único propósito de dificultar nossa vida quando queremos caminhar por sobre as mesas, armários e prateleiras. E infeliz do descuidado que se arrisca a bulir com essas preciosidades. É por isto que parei de subir na penteadeira de Emma. Estava sempre cheia de frascos de perfume, e eu costumava tropeçar neles.

Se os humanos gostam tanto de embelezar suas casas, deviam ter mais gatos. Francamente, servimos para menos coisas do que um bom cão: não apanhamos jornais, chinelos ou brinquedos que se nos atirem, não guardamos o lar contra ladrões e, acima de tudo, não acatamos ordens. Mas o gato é um adorno! Uma preciosidade viva que escolhe cuidadosamente o ponto da casa que irá enfeitar.

Eu falava sobre xícaras de chá, não? E sobre os infelizes que querem examiná-las. Pois bem. Desde que me mudara para aquela nova casa, havia uma grande estante na sala. Pareceu-me impossível usá-la como passarela, pois era repleta de quinquilharias brilhantes – entre elas uma enorme bandeja de louça com seu bule, seu açucareiro e suas xícaras, sobre uma toalha rendada. Emma limpava-as com um zelo nunca visto. A mãe de Jo lhas havia dado; tinha de tratá-las com delicadeza, como se fossem bebês. Eram antigas, valiosas, cheias de recordações. Molestá-las era molestar Jo e toda a sua família. E eis que, naquela noite, lá estava o Pequeno, vasculhando com seus débeis dedos as minúsculas peças de ornato. Eu o observava do sofá, de certo modo feliz porque ele se livrara de sua apatia e tentava descobrir o mundo. Pegou um cinzeiro de pedra, olhou-o, circunspecto, e deixou-o cair. Mas o objeto pousou sobre o tapete e, sendo muito duro, não se quebrou. O Pequeno partiu para as outras curiosidades. Esticou seus braços para o alto, em busca das xícaras, mas era muito franzino e baixo. Então, ficando trêmulo nas pontas dos pés, alcançou a beirada da toalha e puxou-a para a frente.

Os homens não primam pela firmeza e a precisão; suas crianças, ainda menos. Toda a louça veio abaixo, permitindo a ele apenas afastar-se para o lado. Desta vez, apesar do murmúrio da chuva que caía lá fora, Emma ouviu o estardalhaço. Correu para a sala.

– Ah, Deus! O que você fez? Machucou-se?

Fê-lo levantar-se e olhou para a louça. Ruínas.

– Mas está tudo quebrado aqui... O que você fez? Seu pai não vai gostar disso. Não mesmo! Ah, não, não chore!

Já falei sobre o senso de conveniência humana. O de Jo era dos melhores. Decidiu abrir a porta da casa naquele instante propício e surgir na sala, com uma garrafa na mão. Sua cara estava molhada. Creio que se perdera da sua condição de homem e pai, pois não me pareceu mais inteligente do que um galo de briga.

O filhote chorava um choro agudo. Ela ficou parada, cacos de louça em suas mãos.

– Aconteceu por acidente – explicou. – Nós não...

– Foi ele ou foi você? Por causa do que eu disse ontem sobre a sua família? Você quis ofender a minha?

– Não é nada disso, nós estávamos aqui e...

– Então foi ele. Já não lhe disse para vigiá-lo? Você é complacente demais! Como é que deixa esse menino sozinho, Emma, você sabe muito bem que... ah... Por que simplesmente não põe dinheiro nas mãos dele, para vermos se ele o rasga e destrói todo, também? Da próxima vez ele pode querer brincar com facas!

Ela protestou, mas então Jo já agarrara o Pequeno pelos ombros e sacudia-o.

– Por que é você que não tem força? Firmeza? O que é preciso fazer para que seja um homem?

Emma segurou-o, tentando ganhar seu interesse.

– Pare com isso!

– Sou o pai dele! Você o trata como se ele fosse uma menininha. Por isso é que ele ficou delicado demais. Se você não pode lhe ensinar, eu mesmo o faço!

Ele a empurrou e saiu puxando o Pequeno pela blusa. Mas a criança não tinha forças para acompanhar as passadas gigantescas que o maldito dava. Logo estava sendo arrastada pelo corredor.

Saltei da poltrona e segui os dois com os olhos. Não me aproximaria de um homem naquele estado. Seu cheiro era tão forte que me causava quase tanta repugnância quanto sua própria figura.

Jo não parou senão quando chegou ao quarto do filho. Abriu a porta e enfiou-o lá dentro, trancando-o por fora.

– Já devia estar na cama. Ficará aí dentro agora, para ver se não quebra mais nada!

Retornou à sala, onde Emma se colocou à sua frente.

– Pelo amor de Deus, o que você fez com ele?!

– Fique quieta, droga. Ele é meu filho! Acha que eu o machucaria?

– E eu sou sua esposa! O que é que tem feito comigo além de me machucar?

– Eu machuco você? É isso? Quando eu a machuco?

– O tempo todo... seu bêbado!

Ela estava desfeita em pranto. Ocultei-me nas sombras do corredor. Conseguia ouvir o Pequeno dentro do quarto, sacudindo débil e inutilmente a maçaneta da porta. Na sala, a voz de Emma parecia o miado de um filhote faminto. Por que só chorava? Se o menino fosse meu filhote, eu arrancaria a pele do rosto daquele homem.

– Só o que faz é me machucar... me ofender... Não tem um único gesto de amor ou sequer de respeito para mim! Você não é o homem com quem me casei! Não é um bom pai e nem um bom marido. É um louco, um monstro!

Não poderia impedir minhas patas de dispararem a correr para longe quando eles começaram a vociferar juntos e ele a atingiu no rosto com a violência de um inimigo declarado. Foi um único tapa, mas bastou. Acho que o que caiu ali não foi o corpo de Emma, mas todo e qualquer orgulho que ela possa ter tido um dia, pois não ouvi mais nada na sala além dos passos pesados de Jo no corredor, indo para seu quarto – o esconderijo que eu infelizmente escolhera – e o choro agudo de Emma, sentada no chão.

Ele adentrou o recinto. Não me contive. De cima de sua própria cama, rosnei para ele, cuspi-lhe, ofereci-lhe todo o meu desprezo. Eu o afrontava. Sua mão avançou, disposta a aplicar também a mim uma lição inesquecível. Pulei de lado e minhas garras se eriçaram tanto quanto puderam, desferindo-lhe um golpe pelo qual mereço congratulações.

– Coisa desgraçada!

Mais astuto do que eu previra, ele me agarrou pelas costas com a mesma mão que sangrava, esticando-me a pele de modo que fiquei anulada e inteiramente indefesa, enquanto ele me carregava para a sala.

O quarto também possuía uma janela. Mas penso que ele não resistiu à idéia de que sua maltratada companheira presenciasse o crime. Era pela janela da sala que ia me atirar, quando Emma, ainda em prantos, finalmente correu em meu socorro, barrando sua ação com um grito suplicante e colocando-se diante da janela.

Não sei se isto o acalmou e fez com que repensasse seu intento. Talvez apenas o tenha desorientado. O certo é que me valeu a vida. Morávamos no último andar e jamais me ocorrera a idéia de saltar daquela altura. Assim, ele a empurrou e me arrojou apenas pelos degraus da escada de incêndio. Meu equilíbrio não permitiu que eu me ferisse. Para mim, foi menos doloroso cair desse modo do que teria sido para ele se eu tivesse o poder de inverter nossas posições. Mas não menos humilhante.

Fugi sob a chuva. Ele ainda foi atrás de mim, tentando afugentar-me, até escorregar nos degraus molhados. Quase me senti vingada. Eu então estava longe de suas vistas, correndo entre as poças de água na rua, banida.

Há muito tempo não tinha de me valer de minhas artimanhas. Há muito desconhecia o ardor da competição pela sobrevivência. Gatos não contam idade, mas eu sabia que já mão era jovem. Vivera muito e bem à custa da bondade dos homens; agora, era repelida pela sua avareza.

Começava a formular um conceito de ironia que me faria rir se não estivesse exemplificado justamente na minha condição. Mas lá estava eu. De volta às vielas escuras e aos becos úmidos da vida boêmia.

De bom grado retornaria à antiga casa da família, ao conforto sobre as pernas de Pai, à diligência de Mãe e aos jogos com Van e Mar. Se eu me lembrasse de onde procurá-los. Desconhecia qualquer caminho capaz de me conduzir à sua morada. Aceitei que estava só. Que fazer? Contar com a piedade de quem se dispusesse a oferecer uma tigela de leite a um gato à sua porta? Pôr, então, meu precioso couro à mercê dos caprichos de um estranho, que poderia apadrinhar-me ou oprimir-me? Misturar-me à sarna e à fome de irmãos menos favorecidos, engalfinhando-me com eles pelos restos de carne numa coxa de frango que as moscas cobiçavam? Deixar-me tiranizar pela força dos maiores, prescindindo do melhor quinhão do lixo fétido das casas?

Fiz de tudo um pouco. Ninguém me pode acusar de repetir meus métodos. Mantive-os variados e nem sempre eficientes. Tive de reaprender a contar com meus instintos para ser criativa em emergências e a contentar-me com cantos rígidos e reservados como os melhores leitos disponíveis. Acho que então já não era metade da formosa gata que fora um dia. Estava magra e suja. Mesmo assim, não deixei de prover a mim mesma certa diversão que advém do perigo e, devo admitir, da desonestidade. Já no primeiro dia que passei naquele retiro forçado, roubei a um mendigo decrépito um naco de pão com presunto que uma alma caridosa lhe haveria dado. Ele dormia profundamente e foi fácil apanhar-lho da mão. Mais tarde, saciada mal e mal a fome e com alguma investigação, descobri que ele estava morto.

A vida ali não era mesmo muito bela. Mas eu não pretendia ficar por tempo bastante para acostumar-me a ela.

Na semana que vem... a conclusão!


 

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