quarta-feira, agosto 10, 2005

Mia: Capítulo 5 - Final

Todos os de nossa fraternidade felina, por domesticados e dóceis que sejam, seguem um princípio que nos deu a fama de bons caçadores, além de incuráveis ladrões. Ele diz: se quer uma coisa, vá pegá-la agora mesmo.

E eu queria voltar para casa. Digo, para a casa de Emma e do imbecil. Já que nunca seríamos amigos, não seria possível voltarmos a ser apenas adversários silenciosos? Humanos não costumam ser tão rancorosos. Não comigo. Talvez ele houvesse pedido perdão a Emma e pudesse ao menos tolerar-me por ela. Poderia até estar com sua consciência extremamente pesada por haver-nos tratado daquela forma e meu retorno poderia significar seu alívio – embora eu não confiasse em nenhuma destas hipóteses. Mas eu também queria ver como ela ia passando. Devia estar sentindo minha falta. Poderia até estar pensando que me perdera para sempre, a pobre.

Então, reuni toda a minha coragem e desfaçatez a caminho do apartamento.

Alcancei a escada de incêndio. Tudo era silêncio.

Não tive de arranhar o vidro para que me fosse permitido entrar. A janela estava suficientemente aberta para que eu me esgueirasse por ela, saltando para o chão da sala. Seria possível que tivessem saído e deixado a janela aberta? Não é isto o que chamam de imprudência? Quiçá estivessem no quarto, dormindo cedo demais. Fui averiguar.

Não gostei do que vi.

No quarto, somente Jo. Estava atirado sobre a cama, de braços abertos. A indispensável garrafa estava ali ao seu lado. Não havia outro som que não o de uma respiração muito fraca e sôfrega, até doentia. Estava vivo, é claro, mas não muito, penso eu. Alguns homens ficam semimortos quando bebem e penam demais. É como estar doente o bastante para ver a morte chegando, mesmo que ela esteja muito longe.

O guarda-roupas estava com as portas escancaradas e as gavetas abertas. Havia algumas peças no chão, mas só o que sobrara ali dentro eram as roupas de Jo. As de sua mulher – bem como as de seu filhote – já não eram vistas. Eu só aspirava odores de álcool, suor, poeira, fezes sob os sapatos, rua, fumaça, desamparo, solidão. Emma fora embora.

As situações em que somos pegos são pouco mais do que o reflexo de nossas atitudes. Que força pode obrigar a prostrar-se um ser livre, senão a do seu próprio arbítrio? É o mesmo poder que o leva a reagir.

Vermes e abutres tendem a alimentar-se do que está morto. A conduta de uma única pessoa forja inúmeros papéis a serem cumpridos pelos que estão à sua volta, e a oportunidade é um petisco fácil ao qual poucos resistem. A vontade de Emma estava morta. Jo tornara-se o seu verme. Da passividade, da tolerância e da sujeição, porém, ela se erguera, protegendo a si e ao seu filho. Decidira-se pela mudança, tarde, mas não tarde demais. E nada, nem minha recordação, poderia tê-la mantido na inércia.

Decerto que esperara por mim... Decerto que me julgara perdida. Devo ter me ausentado por muito tempo, não sei quanto. Não a culpo. Não posso. Ela salvou o que lhe restava.

Mas bem que poderia ter-me esperado um pouco mais.

Hoje, subi ao telhado para observar as estrelas. Gatos viris, apaixonados por nada, entoavam seus cantos ao longe. Os cães enlouqueciam com o barulho e os mais tristonhos e velhos uivavam. Fechei meus olhos e apreciei aquela sinfonia dissonante. Logo eu já não estava sozinha no meu camarote.

– Ora, veio disputar território?

Era o Velho alvacento que vinha me saudar. Agachou-se também junto à calha do prédio, pouco distante de mim. Recebi-o em paz.

– O meu... tem estado um pouco vazio.

– Percebi.

Calamo-nos por um instante.

– Às vezes, partem antes de nós. Mas fui afortunada.

E não dissemos mais nada.

Tenho visto o Velho pelos telhados, mas não conto dividí-los com ele por muito tempo. Este gato é uma antigüidade. Se fosse um objeto, os homens o louvariam em vez de desprezá-lo. Logo ele partirá de modo que jamais possa ser encontrado, se não for antes pego por um carro ou uma turma de delinqüentes sedentos de violência.

Eu? Ora. Essas coisas podem acontecer a mim também. Estou de volta às ruas. Não creio que demorarei a esquecer-me do rosto de Emma, de seu nome, de seu perfume. Creio menos ainda que encontre novamente criança ou família que queira acolher-me em seu regaço, mas quem sabe ao certo? Não tenho compromissos e nem lugar onde depositar meu cadáver. Já sou velha. Faltam-me dentes. Dirá alguém que as beldades são eternas? Não eu. Mas não me queixo. Fui agraciada com tudo o que alguém como eu poderia pedir, exceto o sono final num leito macio. À frente de uma lareira, à sombra de uma árvore, nos córregos das sarjetas, em braços amáveis – que me importa onde encontre a morte? Se encontrei a vida nos melhores lugares que poderia imaginar!

Não estou arrependida ou injustiçada. Não se diz que os gatos possuem muitas vidas? Eu vivi por todas elas.

Minha existência de fidalga foi longa, invejável e magnífica. Imite-me quem puder.


Janeiro de 1999.

Revisão em março de 2003.


 

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