quinta-feira, agosto 04, 2005

O dia em que fui mosca.

Hoje de manhã no banheiro. Azulejo amarelo estampado, casa de velho, flores setentistas me cercam, eu na privada, eu privada, particular, muito minha e livro na mão, e as moscas na parede.

As moscas trepam.

Uma trepada estática, congelada no tempo. Coladas de rabo em rabo, não tentam andar como os cachorros que trepam na rua nem se alavancam uma na outra como os cachorros que trepam na cama. Só... estática. E a vida delas é trepar na inércia.

E eu: e se ficarmos assim?

E se nossa vida der nisso? Dois putos imóveis no nada, vidinhas de poucos segundos, prisão de felicidade enganosa. De costas um pro outro, colados, olhando pro nada, sem abraço, sem alavanca moral, sem brio, moscas. Com asas de efeito psicológico, que não servem pra escapar de uma mão espalmada na parede.

Minha mão espalmada. Sexo esmagado bem na linha da vida.

Eu não sei por que estão aqui. Eu estou aqui. Meu banheiro. Que é que há? Gostam de fedor? Ele me disse que é por causa da umidade. Ingênuo. Pra mim elas gostam é de bunda. Essas mosquinhas de umidade. O planeta delas gira em torno do ralo.

Ele me disse pra não pôr a mão no ralo que é sujo, mas eu fui pro ralo pra ver o que é que o ralo tem. Tampa fora. Mão no buraco. Maçaroca de cabelos de todas as cores, cabelos de morenas e cabelos de carecas, presentes de gente querida. Há quanto tempo não limpam esse ralo? Cabelos de gente anterior a mim saem junto. Cabelos em profusão. Bigodes de gato. Cílios de velha. Pentelhos de amigo. Cera de ouvido. A nunca acabar.

E as moscas se juntam ao meu redor, frágeis como a lucidez. Fáceis de eliminar. Como a lucidez. Só um tapa. Vários tapas. Pelas paredes as mãos espalmadas. Cabelos e o lodo do mundo pendendo das mãos. Reunião de moscas. Platéia efêmera. Eu espetáculo do ridículo. Eu só mãos e lodo.

- Vocês querem umidade, seus porras?

Tampa de volta no ralo. Isso, feche os buraquinhos com o pé imundo. Unhas de dinossauro sem cortar há mais de mês. Feche o box também. Ligue o chuveiro. Tomar banho o dia inteiro. Limpar a mente. Anotação mental: não fazer mais anotações mentais. O celular tem agenda, porra, use a cabeça. Abra a cabeça. É quase, quando escorrego e bato a testa na torneira. Mil xingamentos. O celular toca lá fora. É ele? Ele diz que não vem? Não vou atender. Estou sangrando na testa. É certeza que as moscas acham graça. Se eu fosse como elas eu também acharia.

Se eu fosse como elas.

Se eu fosse como elas minha vida seria trepar na parede. Passar a existência na estática. Parar o tempo no ponto do gozo e não pegar o próximo trem. Improdutividade. Sim. Criogênica e feliz.

Mas ele telefona pra dizer que não vem! Por que telefonaria se viesse? E se ele não vem a casa desmorona. As moscas trepam, rabos nos rabos, nem antenas mexem. Só uma não tem par. Sou eu.

O telefone pára. Eu mosca solitária achatada na parede.

A água desce. O dia passa. Eu mosca.

- Amor? Amor... o que é que você... caramba, olha sua testa. Me deixa ver isso. Vamos lavar.

Ele me puxou pelos braços.

- Por que o banheiro tá cheio d’água? Por que é que você não atendeu ao telefone? Eu liguei pra dizer que ia me atrasar uma meia horinha. Desculpa. Você tá bem?

Zum zum zum zum.

- Amor? Fala alguma coisa!

- Zum zum zum zum!

- Palhaça...

A casa ainda está de pé. Ele veio. Ele me abraça. Graças à deusa. Bem-vinda, lucidez.


 

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