segunda-feira, dezembro 19, 2005

Prelúdio da Queda

um tributo a Poe

Este não é um conto novo, mas nutro um carinho especial por ele por se tratar do meu humilde tributo a um dos maiores autores de terror de todos os tempos, certamente conhecido de todos aqui: Edgar Allan Poe.

Não se trata de uma tentativa de copiar o mestre, o que seria, além de presunçoso, inútil. Apenas tomo emprestados alguns elementos da sua fantástica obra que, espero, os leitores poderão identificar com facilidade.

Para vocês:


Prelúdio da Queda

Berenice suspirou. Seus olhos eram pálidos faróis; seu rosto era um rochedo severo; seus cabelos, um mar revolto e prateado que inundava seu leito de morte.

Ainda assim, era bela. Belíssima para o olhar do rapaz que lia paciente um livro qualquer, buscando distraí-la de sua dor:

– “A felicidade efetivamente consiste no meio-termo, nem muito alta nem muito baixa; à opulência nascem-lhe cedo cabelos brancos, mas a simplicidade tem velhice longa...”

– Roderick...

– Sim?

– Já basta. Sabe que Shakespeare me põe doente.

– Então, diga-me que livro é capaz de deixá-la sã novamente, minha mãe! – O rapaz procurou sem sucesso conter a emoção na voz contradita, que ecoou nos arcos pontiagudos da câmara. Estreitou a mão da anciã entre as suas.

– A senhora parece tão pequena – murmurou. – Tão miúdos estes dedos que já se enrolavam nos meus cabelos quando eu mal sabia falar.

– Você era um lindo menino – disse a mulher. – É um lindo menino.

Roderick tinha o semblante pálido como o de Berenice, mas aquecido pelo rubor próprio da juventude. Os cabelos pairavam sobre a cabeça como um elemento mais leve do que o próprio ar. Fios finíssimos e brancos. Como os da mãe. Seus olhos eram de um cinza luminoso no qual se podia entrever um ensaio azul. Olhos que agora irradiavam pesar e indignação. A lágrima que escapou de um deles foi regar a face seca da velha, que cerrou os olhos como quem recebe a carícia de um amante. Ela levou a mão rugosa ao rosto do filho, que a acolheu junto à boca, beijando febrilmente seus dedos.

– Mãe. Minha mãe. Não vá, eu lhe imploro. Esta família inexiste sem a senhora. É nossa alma, nosso eixo, nosso alicerce; não sobreviveremos sem...

– Cale-se.

– Mãe!

– Por Deus, Roderick. Cale-se e escute meu último pedido. Com minha passagem, você se torna o senhor deste solar. Deve tratar com moderada indulgência os seus criados; com hospitalidade os visitantes; com reserva os inimigos. Acima de tudo – ouça-me bem – deve zelar por sua irmã. Você é seu protetor agora. É o guardião de nosso nome e de nosso sangue. Dê-me netos a quem possa mostrar meu retrato e dizer: “Sua avó foi senhora de tudo o que você vê.” Você deve fazer de Madelyne sua mulher.

– Mãe... – O rapaz continha-se agora; seu tom era de resignada censura. – Bem sabe que amo Madelyne. Mas meu futuro está em Annabel. Ela me faz feliz como uma manhã de primavera que nunca tem fim. Ela...

Os olhos de Berenice cresceram numa fúria reprimida.

– Roderick – crocitou, apertando a mão forte do filho. – Annabel não é para você. Por amor a mim, você se casará com Madelyne. Fará nela os seus filhos, belos e perfeitos. Deve preservar nosso nome, nosso clã, a pureza de nosso sangue. Não se engane. Você deve honrar a casa de seu pai.

– Eu não desejo Madelyne! – esbravejou o jovem. – Peça-me qualquer outra coisa, mãe, e eu de bom grado a atenderei; se pudesse, aqui e agora, trocaria minha vida pela sua e partiria feliz em seu lugar. Mas não me peça que abra mão do meu amor. Eu protegerei Madelyne e a tratarei com honra por todos os dias da minha vida, mas não, não farei da minha irmã a minha esposa!

No exato momento em que a sentença se findou nos lábios de Roderick, estes sofreram a aguda contrariedade da mãe num tapa que quase o mandou ao chão. As frágeis mãos da velha Berenice ainda detinham o poder de uma matriarca, ainda que no leito de morte.

O jovem a encarou, a mão protegendo a face ferida, o olhar rancoroso.

– Maldito infeliz! – gritou Berenice. – Gosta de me ver agonizar lentamente, esgotada pela doença, consumida pela sua traição? Por que não crava de vez uma faca no meu peito? Mate-me! Mate toda esta família! Oh, por Deus... mate-me depressa.

A velha agora tinha o rosto virado, envergonhado, banhado em lágrimas. Seu corpo era sacudido por soluços que logo se transformaram num acesso de tosse. Sons roufenhos subiam por sua garganta, salpicando o lençol de vermelho. Ela levou a mão à boca. O rapaz, comovido, jogou-se aos pés do leito, tomando a doente nos braços.

– Oh, mãe! Minha querida, minha adorada, eu sinto tanto!

– Se sente tanto assim, faça a última vontade de sua mãe. Dê-me netos de sangue puro. Como você e sua irmã. Como eu e seu pai.

Roderick respirou fundo.

– Mãe, eu a amo – disse suavemente. – Mas vou me casar com Annabel. Aceite. Sinta-se feliz por mim. Vá para o outro lado em paz. Eu tomei minha decisão. Nem seu choro, nem sua raiva, nem sua morte irão mudar isso.

Uma ira milenar injetou veias vermelhas nos olhos de mulher, que cresceram como dois sóis furiosos. Agarrou com uma mão os cabelos da nuca de Roderick e mostrou-lhe a outra espalmada, pintada do sangue dos seus pulmões. Mostrou-a como uma promessa. E rugiu numa voz que já não era sua:

– Desgraçado seja, meu filho. Eu o almaldiçôo por este dia, por sua escolha, por sua deslealdade. Saiba, Roderick: Annabel não lhe dará filhos. Secarei primeiro seu ventre, depois seu corpo formoso e por último seu coração. Esta será a duração da vida dela ao seu lado: uma manhã de primavera e nada mais.

O jovem nada disse; um protesto morreu em sua boca aberta em espanto. A mágoa feria sua face, mas a anciã continuou:

– Que estas paredes, estas rochas sejam minhas testemunhas e o túmulo de minha linhagem. Eu o amaldiçôo, Roderick, último filho da casa de Usher!

O rapaz soltou-se de um tranco do toque da mãe. A velha Berenice caiu no leito, afundando, entre os lençóis, minúscula, exausta. Mas seus olhos não abandonaram a figura do filho que se afastava, horrorizado. Sua garganta emitiu um último e áspero suspiro, de sumo sofrimento ou sumo prazer.

E então Berenice deixou de respirar. Mas seus olhos ainda estavam abertos numa alegria diabólica, pregados no nada, eternamente inquisidores.

FIM.

Berenice, Annabel e Roderick são nomes de personagens de textos famosos do contista e poeta Edgar Allan Poe; Prelúdio da queda pode ser considerado como um fanfic em homenagem ao conto A queda da casa de Usher.


 

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