quarta-feira, fevereiro 08, 2006

O Chifre Negro - Capítulo 1

Caros visitantes,

Quem no ano passado curtiu os episódios de Caia na Noite e Mia - Uma Autobiografia Felina ficará feliz com o retorno das mini-séries a O Demo Sentado em Meu Ombro. Isso mesmo! Temos uma nova noveleta - nova noveleta, será cacófato ou só um eco pobre? - para agitar essas quartas-feiras do cão. Digo, do Demo!

O Chifre Negro, série em 5 capítulos, é minha primeira incursão no território das lendas mágicas. Trata-se de um conto de fadas adulto - designação falha, já que não há fadas nele. Adulto: deixem fora do alcance de crianças. Nessa história, seguiremos os passos ora sutis, ora perigosos, de uma princesa em missão especial: salvar a vida do pai, um rei outrora grandioso. Para isso, ela conta com tudo a que uma princesa tem direito: beleza, servos leais, coragem, virtude e... uma obstinação que desconhece os limites da crueldade. Mas será suficiente?

Nas entrelinhas do conto há uma simbologia proposital que espero que vocês apreciem. Por favor, não deixem de enviar suas impressões e críticas. O Demo Sentado está trabalhando para melhor atendê-los, eheh.

Agora, acompanhem a donzela nessa aventura metade sonho, metade pesadelo.

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Capítulo 1: Se as belas são feras.

O Rei ancião ressonava pesado. O homem de pé, nem tão mais moço, tomou-lhe de novo a pulsação. Pousou a palma leve da mão no peito que subia e descia.
– Seu coração está exausto – falou num sussurro. – Trabalhou duro por muitos anos e quer descansar de vez.
Ao seu lado, olhos se arregalaram em desesperança. Eram azuis, talvez demais, e pertenciam à moça que, sentada à cabeceira do doente, afofava seu travesseiro. Filha, Princesa, cabelos dourados e pele muito clara corada por manhãs de sol bom. Menina bela a meio caminho de bela mulher.
– Então ele vai morrer – ela disse sem conformar-se. – Nada mais pode ser feito?
O homem de barba, sem bigodes, franziu o cenho triste.
– Sua alteza faria melhor em procurar o consolo na felicidade de um bom casamento. Seria bom apressar-se, para que o reino não fique sem um rei.
– E como é que a morte de um pai pode permitir a felicidade da filha, ainda que com o melhor dos noivos? – A Princesa se levantou, fugindo da idéia. – Além disso... os pretendentes não me agradam – confessou em meia-voz.
– Mas pode realizar o sonho de seu Rei, fazendo a paz com o Reino ao Lado. Despose o Príncipe Inimigo e terminará com a guerra que fez de seu pai um velho tão cedo.
A menina já não ouvia. Tinha os pensamentos além da janela aberta, por onde encarava o horizonte.
– Não – disse. – O dia é bonito demais para um funeral. – Lá... em algum lugar, algo que não temos ou não sabemos. Algo deve curar meu pai. Médico, filósofo, Conselheiro – o senhor sempre serviu bem a meu pai. Seja também meu Conselheiro, mas não me fale em núpcias. Diga-me como salvar o Rei, pois não desejo outra coisa.
O sábio pigarreou, vacilou; tinha as mãos às costas, pensando se escondia ou revelava o que ia em sua cabeça. Aproximou-se também da janela.
– Há uma coisa – disse –, ou talvez não haja. Não sei ao certo. Mas se eu pudesse perguntar aos antigos eles diriam que há.
– O que é?
– O chifre de um unicórnio. O cálice feito do chifre de um unicórnio tornará o vinho em seu interior no remédio absoluto, curador de qualquer mal. Contudo – resmungou sem ânimo –, em todos os meus anos de estudos eu jamais vi um, nem conheço quem possua semelhante artefato.
– Pois então conheça. Consiga-me um chifre de unicórnio.
O homem suspirou longamente.
– Um velho não pode obter isso. Um soldado, tampouco, nem um exército, nem um decreto real. – E agora o homem ria um riso discreto, meio tosse, meio amargo, mas parou e olhou a Princesa nos olhos cujo azul desafiava o do céu. – Os unicórnios são criaturas raras, belas como corcéis divinos, mas ferozes como bestas do inferno. Não, não; os homens podem guerrear para arrancar seu poder e beber no seu chifre, mas um desses animais magníficos, se importunado, pode pôr fim a uma legião. Assim diziam os antigos, antes de eu nascer, no tempo em que meu próprio mestre era menino. Apenas um outro ser, seu rival em beleza, dignidade e pureza, seria capaz de domá-lo.
– E que criatura seria essa?
– Uma donzela – sorriu o Conselheiro.
A Princesa voltou-se em desafio. Por um instante o velho imaginou-a ofendida. Mas ela o encarou na seriedade de um túmulo.
– Serei essa donzela – falou. – Diga o que preciso fazer para ter o poder do chifre do unicórnio. Diga-me aonde devo ir, o que devo dizer, cantar ou sacrificar.
O sábio tinha uma tristeza aflita no rosto muito franzido quando a tocou por instinto nos ombros.
– Não – disse com firmeza. – Sua alteza é a única herdeira do trono. Se o Rei morrer eu devo zelar por sua segurança. Acredite: essa criatura que se parece com um sonho é na verdade um pesadelo vivo. Se ela olhar em seus olhos e não a considerar digna, irá destruí-la sem pena. Não deve correr perigo. Eu lhe peço: deixe que outra pessoa vá em seu lugar. Há centenas de donzelas no Reino Daqui que certamente se arriscariam felizes pela vida de seu soberano...
– Não! – respondeu a menina. – Eu sou a filha do Rei. Quem morreria por ele com mais alegria? Que amor pode ser mais forte do que o meu? E quem poderia – acrescentou com um sorriso ligeiro de triunfo – ser mais digna do que uma Princesa?
O Conselheiro a fitou demoradamente. Por fim, pôs os olhos no chão.
– Com ou sem o Rei, em breve eu serei sua rainha – disse ela num tom controlado. – Por isso, faça de meu pedido uma ordem. Diga-me onde encontrar o unicórnio e como devo me preparar para arrancar o chifre de sua cabeça.
Assim, no dia seguinte, muito cedo, a Princesa partiu para a floresta acompanhada de metade da guarda real, comitiva estranha e agressiva para uma manhã tão suave. Liderava o grupo armado um Capitão herói, homem de muitas batalhas e poucas palavras. Ia triste: amava o Rei e pensava que a Princesa, na iminência de perder o pai, enlouquecera. Procurar unicórnios! Mas ela ia de queixo erguido, montada na égua mansa cor de canela, o longo vestido de linho branco acenando na brisa, a cabeleira de ouro rivalizando com o sol. Uma noiva predestinada, pensariam os viajantes que a vissem. Mas a comitiva não tomou a Estrada Real. Seguiram em fila pela trilha que levava ao Bosque Escuro, primeiro larga, percorrida na boa estação por nobres caçadores com seus cães e arcos e criados, depois estreita e hostil, fazendo as espadas saírem das bainhas para abrirem caminho com força.
O Conselheiro devia ficar, velar o Rei em agonia, e daquela janela observou o cortejo ser engolido, soldado após soldado, pela folhagem do Bosque. Suspirou uma prece aos espíritos das árvores para que dessem bom termo à missão da Princesa.
– Se preciso, arrancarei o chifre da besta com minhas próprias mãos – jurara, cruel, a donzela – e farei com sua pele um casaco de inverno.
A Princesa tinha flores silvestres em feição de coroa em torno da cabeça. As pétalas frescas perfumavam seus cabelos. O orvalho da noite ainda brilhante nas folhas do bosque colocou diamantes de água em suas bochechas e cílios. Os soldados suspiraram felizes por escoltar um anjo.
A mata era densa, mas a comitiva chegou por fim a uma clareira, e a Princesa ergueu a mão: bom lugar para apear. Os guerreiros sabiam o que fazer. Ocultaram-se como animais de caça no Bosque Escuro, não muito longe, não muito perto, e a Princesa sentou-se entre as raízes de uma árvore frondosa, suas pernas muito juntas, joelhos arqueados, as saias brancas espalhadas sobre as folhas secas, tapete que estalava.
E esperou.


Na próxima quarta-feira, Capítulo 2: Caça ao tesouro alheio!


 

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