terça-feira, fevereiro 14, 2006

O Chifre Negro: Capítulo 2

A caça ao tesouro alheio.

Viu o sol subir e vazar em raios luminosos entre as copas das árvores e sentiu fome, e nada aconteceu que não o salto de uma lebre e o vôo dos pássaros, mas ela não quis partir. Seu pai, o Rei, esperava por ela no castelo: estava determinada. O Capitão, seu servo fiel, zelava por ela entre os arbustos: estava segura.
Viu também o sol ir desmaiando lento em sua cama no oeste, estendendo no céu um lençol púrpura. Mas ainda assim não se ergueu para partir. Foi quando ouviu o estalo, aquele que fez seu coração saltar. Ouviu outro estalo, e este fez de seu peito um tambor.
Os sons delicados da mata em movimento logo revelaram o ruído seco dos cascos. Vacilaram, desconfiados talvez, mas se avizinharam mesmo assim.
A grande cabeça surgiu do verde do bosque. Era negra, espantosa; erguia-se no topo de um pescoço longo e forte e patas poderosas cujos tornozelos arrastavam longas franjas negras sobre os cascos. O corpo se revelou alto, reluzente. A criatura deteve o passo, como se soubesse dos olhos que dissimulados a admiravam. E o chifre – feito de grossos anéis, reto, muito agudo e lustroso como uma adaga de obsidiana – rebateu um raio de sol e cegou todas as vistas.
A Princesa levou a mão aos olhos para protegê-los, mas era tarde. Fora tocada pela beleza do Unicórnio.
O grande animal negro aproximou-se, o som de seus passos fazendo eco no coração da donzela. Parou a uma distância decisiva, em que poderia tocá-la com o focinho de veludo ou trespassar seu corpo com a lança em sua testa. Bufou impaciente. Mas a Princesa não temeu, nem piscou. Sustentou o olhar nos olhos muito pretos da criatura: de tão pretos, quase rubros.
Sentiu a ponta do chifre roçar perigosa em seu rosto, e não tremeu. Então o animal baixou de vez o pescoço, arqueou uma perna, depois outra, e por fim repousou a pesada cabeça no colo da Princesa. Ela mergulhou os dedos delicados na sua crina selvagem. O nobre animal se rendera; era refém da beleza de uma donzela, e o tempo parara naquele colo branco, naquela cria negra, e tudo era silêncio.
Mas um novo estalo se fez ouvir, e outro, e outro, e logo uma dúzia de guerreiros armados se erguia, metal entre folhas, saltando para a clareira e cercando o idílico par.
O Unicórnio retesou-se, fera acuada, quando um laço voou para seu pescoço. Seguiu-se outro, e então mais outro, e o animal teve sua cabeça presa por grossas cordas. A Princesa gritou, subitamente desperta, subitamente arrependida do crime que antes desejara ardentemente cometer. O Unicórnio devia morrer para que seu pai vivesse. Mas ela gritava, oh, não, oh, não, e os soldados, fiéis à missão, eram surdos à sua súplica.
O animal aquietou-se, resfolegando do esforço pela liberdade, e julgaram-no derrotado. Um ou dois suspiros de alívio e assobios de vitória se ergueram na clareira. Mas o olhar do corcel se cruzou com o da Princesa, e ela chorava, e as lágrimas em seus olhos eram tão genuínas quanto o ódio nos dele.
De repente, o Unicórnio empinou-se, então, corcoveou e suas patas traseiras atingiram o peito de um soldado, atirando-o de uma vez no chão. O animal o pisoteou, um ato calculado que esmagou o pescoço do homem, e uma chuva de coices seguiu-se. A fera bufava, relinchava furiosa, arremetia contra os soldados. Derrubou dois, pisando com força por cima de seus escudos, escoiceando e se contorcendo. Um arqueiro lhe acertou uma flecha no flanco direito, e o animal correu para ele e o golpeou com as patas dianteiras. O sangue escorreu farto da ferida, mas seu ódio era maior do que sua dor. Outro guerreiro investiu contra ele empunhando uma espada; o ágil garanhão escapou do golpe curvando-se e usando o próprio corpanzil para esmagar o inimigo contra uma árvore. Um a um, os soldados da Guarda Real sofreram a fúria do animal traído. Mas ele reservou sua arma mais letal para o último, o líder, o Capitão.
O Unicórnio raspou o chão com a pata esquerda, o pescoço arqueado, os olhos fixos no combatente. O Capitão, ciente da nobreza do corcel, curvou-se em reverência, mas manteve a espada em punho, reconhecendo a luta iminente. Então, homem e besta correram de encontro um ao outro, e a lâmina colidiu contra o chifre negro. O animal ganhou distância e investiu mais uma vez, só mais uma, contra o guerreiro. Mas seu chifre não procurou a espada. Encontrou o peito do Capitão e, rompendo metal, carne e osso, perfurou seu coração. Uma morte digna para um digno adversário.
O corpo do homem tombou quando o Unicórnio retirou depressa, ato único, seu chifre do peito rompido. Bufou e ofegou, e seu olhar percorreu a clareira. O sangue banhava seu peito, sangue dele e de outros. Os inimigos jaziam no chão. Restava um, porém, e este soluçava agarrado a uma árvore, os grandes olhos azuis comprimidos no rosto, as mãos crispadas junto ao peito. A Princesa chorava.
Atreveu-se a olhar nos olhos da negra besta, e não desviou os seus. Devia morrer agora. Que o fizesse então de cabeça erguida.
Mas o animal não se aproximou, não corcoveou, nem a alcançou com a lança que tinha por chifre, agora vermelha do sangue de um herói. Ele a encarou por um longo instante de mágoa; então, deu-lhe as costas. Galopou para longe.
A donzela viu confusa o corcel se afastar. Depois, levantou-se e olhou ao seu redor: o horror da matança e dos corpos espalhados finalmente a tornara insensível. Já não conseguia chorar ou gritar. Tentou andar, e suas pernas demoraram para cumprir sua vontade. Os passos miúdos se afastaram devagar daquele local de morte. Devia voltar para o castelo e conformar-se; prantearia o pai e vestiria preto, então vestiria branco outra vez e enviaria emissários ao Príncipe Inimigo, solicitando-o como aliado e marido. Assim devia ser.
Olhou ao seu redor, porém, e não reconheceu a mata. Correu para um lado, depois para outro; a trilha aberta pelos soldados fora como que engolida pelas árvores. Então, com um gemido, admitiu que estava perdida.

Na semana que vem, descubra... A serventia da virtude.


 

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