terça-feira, fevereiro 21, 2006

O Chifre Negro: Capítulo 3


A serventia da virtude.



Andou e andou por sobre pedriscos e lama, buscando sinais do próprio caminho. Os raios do sol já não passavam pela folhagem. O céu escurecia e ela não conhecia as estrelas, não sabia traçar seu percurso por elas como um cavaleiro ou navegante. Então, realmente sentiu medo. Sua boca estava seca e seu estômago se contorcia. Era uma Princesa, nascida entre bordados e criados, e nada sabia do Bosque Escuro.
De manhã, pensou, veria o sol e por ele saberia seguir para o leste. Mas era noite, e teria de salvar-se de tudo o que se movia nas sombras. Ouviu sons no fundo da mata e sentiu seu corpo gelar de frio e temor. Mas viu também uma luz e assim teve certeza de que eram homens. Sim: cavalheiros, decerto vassalos do Rei! Eles a conduziriam em segurança ao castelo. Por isso, sem muito pensar, ela correu para a luz.
Os homens se sobressaltaram ao ver surgir dentre as árvores a donzela resfolegante, o vestido sujo de barro e sangue, a grinalda de flores desmanchada nos cabelos eriçados. Olharam para ela com indecifrável interesse. Era um pequeno grupo, um senhor bem vestido e quatro empregados que recolhiam o pesado corpo de um javali morto havia pouco. A luz vinha do candeeiro que um deles carregava. Por fim o líder sorriu. Mas não era para ela que sorria.
– Vejam – disse para seus homens –, um presente do bosque para os caçadores.
E os servos riram, mas a donzela ofendida respondeu com firmeza:
– Sou a Princesa do Reino Daqui!
Então os homens gargalharam com mais gosto.
– Uma Princesa não anda sozinha na mata – disse o senhor – nem veste roupas imundas. – E dizendo isso deu um puxão na barra da sua saia já desfeita, que a fez gritar em protesto.
– Sou a Princesa e exijo que me levem ao castelo Daqui! O Rei os recompensará com muita generosidade.
– Se fosse mesmo a Princesa, saberia que o Rei está morto.
– É mentira! – gritou em lágrimas. – Ele vive! E ainda viverá quando...
– Não viverá muito tempo de qualquer jeito. – O homem se aproximou dela com um sorriso maldoso, e ela sem querer recuou. – Além do mais, não estamos no Reino Daqui. Você cruzou a fronteira há muito tempo, Princesa dos Mendigos. Estamos no glorioso Reino ao Lado. E aqui a lei do seu Rei é lixo. – Falando assim ele se virou para seus homens e, sem olhar para ela uma segunda vez, repetiu: – Uma pequena dádiva da mata para os caçadores. Façam bom uso dela.
– Sim, meu Príncipe – responderam os servos.
A donzela gritou, vociferou, xingou e suplicou, mas naquela noite, naquele lugar, suas palavras nada eram. Os homens tentaram silenciar seus protestos com golpes no rosto. Depois, desistiram disso ou passaram a achar graça nos seus gritos. Eles violaram sua honra e se divertiram com seu corpo repetidas vezes antes de ordenar que fosse embora se não quisesse morrer. Apenas o Príncipe Inimigo não quis tocá-la, pois não gostava de mulheres sujas, e enquanto os homens riam e a empurravam entre si ele também sorria, chamando-a Princesa dos Porcos. Foi uma noite muito longa.
Naquela manhã o sol tinha uma luz morta, enlutada num véu de nuvens, e o céu ficou cinzento. A Princesa abriu os olhos e não estava em sua cama. Não sonhara. Naquela noite, havia realmente perdido muito; coisas de pouca importância, como os sapatos de pelica, que mesmo assim faziam falta aos seus pés descalços sobre pedras e espinhos; e coisas caras. Muito caras.
Tocou os próprios lábios e sentiu o sangue que secara sobre eles; sua boca latejava. Então, levou a mão ao baixo ventre e ao toque dos próprios dedos ela sentiu dor outra vez. Uma dor que já não estava ali, no corpo, mas na alma, e que não passaria.
Podia ser Princesa, mas já não era donzela, e uma coisa de nada valia sem a outra. Nobre algum a desposaria agora.
Tinha a mente perdida em mil dilemas e dores; mal se deu conta dos sons que se aproximavam depressa. Homens na mata. Seu corpo todo se preparou para a fuga, para a proteção; mas acabou por reconhecer que as vozes pertenciam a soldados e que esses soldados chamavam... por ela.
Sim. Todo um dia se passara desde que deixara o castelo. Certamente o Conselheiro decidira mandar uma tropa em busca da que partira escoltando a Princesa. Naquele momento, já deveriam ter passado pelos guerreiros mortos e recolhido seus corpos. Mas ainda precisavam devolver ao Rei sua querida filha, mesmo que para isso devessem atravessar o Bosque Escuro até os limites do Reino ao Lado.
Quando percebeu as vozes perto demais, escondeu-se.
O Príncipe Inimigo dissera que seu pai enfim morrera. Se fosse verdade, então tudo estava perdido. O Rei morto, o Capitão de sua guarda assassinado, a Princesa desaparecida: o reino logo seria reclamado por algum duque vizinho ou invadido pelas tropas do Reino ao Lado. Se fosse mentira e seu pai ainda vivesse, de que adiantaria voltar ao castelo? Falhara em obter a cura para seu mal e estava desonrada. Traria vergonha ao Reino Daqui, viveria enclausurada, morreria sozinha.
Não voltaria; não podia. Que por todo o reino acreditassem que ela perecera, como os bravos que a acompanhavam, sob as patas da fera de um só chifre, buscando a cura para o Rei. Que seu nome fosse lembrado com honra e tristeza e não com vergonha.
Deixou que os homens passassem por perto sem responder aos seus chamados. Depois, afastou-se na direção contrária.
Mas que faria de si mesma? Que destino teria, perdida em terras inimigas? Buscar uma vila, quem sabe, e imiscuir-se entre os miseráveis, entre os doentes e arruinados, e finalizar assim sua desventura? Desgraçada, vender o corpo, havia pouco virginal, por um pedaço de pão? Não... oh, não.
Havia um deserto em sua garganta. O sabor amargo na boca também pedia água. Ela vagou lentamente, procurando onde matar sua sede. E foi à beira de um pequeno lago que encontrou mais do que esperava.

No próximo capítulo... No mal, a cura! E como se trata de um capítulo bem curto, em caráter especial ele entrará no ar não na próxima quarta, mas nesta sexta-feira. Estejam aqui.


 

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