sexta-feira, fevereiro 24, 2006

O Chifre Negro: Capítulo 4


No mal, a cura.

Ali, na outra margem, oculto nas sombras das árvores frondosas como um rei sob o dossel de sua cama. Ali estava ele. Negro, ainda vigoroso, mas combalido. Estava deitado em suas próprias patas dobradas, a cabeça baixa, como a suportar o peso de um grande sofrimento. Seus olhos estavam fechados; seu peito, perfurado ainda pela flecha.
Por um instante ela não se moveu e nada disse. Seria o Unicórnio capaz de perceber sua presença? Teria ele agora um ódio ferino, mortal, por sua figura? Perguntas que a distância e o silêncio não poderiam responder.
A Princesa pôs um pé na água, sentiu-a fresca; depois, o outro, e pisou com cuidado as pedras lisas do leito do lago, experimentando sua profundidade. Logo suas pernas sumiram e suas roupas, se ainda era possível chamar roupas aos trapos que arrastava, se enfunaram na superfície da água. Seu corpo afundou até a altura do peito e ela sentiu o frescor afagar sua carne ferida. O que restara do seu vestido só fazia transtornar-lhe o passo. Livrou-se então dos andrajos, que escorregaram brancos e leves no espelho prateado do lago feito nuvens no céu cinzento. Quando alcançou a margem rasa, estava nua; sentia-se limpa.
O Unicórnio finalmente ergueu a cabeça e a viu, mas nada fez para defender-se ou atacá-la. Observou enquanto ela saía da água. Seu olhar não falava de traição ou vingança. Apenas fitava. O peito estremecia com a respiração sôfrega. A ferida não sangrava mais, mas a flecha estava ali, fincada, dolorosa.
A Princesa se aproximou e se ajoelhou devagar diante da criatura. O animal que ela desejara domar e matar e pelo qual se embrenhara no Bosque Escuro e perdera sua virtude agora estava ali, uma vez mais à disposição de sua compaixão – ou de sua crueldade.
– Na clareira – ela murmurou – eu o traí, e você me deixou viver. Você deveria me odiar, mas não vejo ódio em seus olhos. Eu perdi tudo caçando-o. Também deveria odiá-lo. Mas...
Ela deteve a própria voz, tocando na flecha com os dedos finos que lentamente a envolveram e com força começaram a puxá-la. O Unicórnio bufou e se remexeu, mas não se ergueu ou saiu do lugar. A dor arrancou dele um relincho sofrido, e o esforço fez a Princesa grunhir, mas a flecha por fim soltou-se do corpo negro. Respingos de sangue pintaram o rosto da menina e um fio ainda escorreu da ferida. No entanto, livre da flecha, a carne do forte animal se curaria sozinha.
A Princesa então terminou sua sentença:
– Não o odeio. Queria domá-lo, mas fui domada. Como você, fui atraída, emboscada e ferida – no corpo e na alma. Só agora compreendo o que disse meu Conselheiro. Nós somos iguais.
Ergueu-se e acariciou a testa aveludada do animal, que esticou o pescoço em sua direção. A ponta do perigoso chifre pousou com suavidade no queixo da menina; depois, deslizou para o ventre. O toque a envolveu num calor momentâneo e bem-vindo. E ela não sentiu mais dor.

Na semana que vem... Final. Feliz? Só passando por aqui pra saber. Espero vocês.


 

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