quarta-feira, março 01, 2006

Capítulo 5: Final. Feliz?





Final. Feliz?

No quarto escuro o Rei ergueu devagar a mão. O Conselheiro sentou-se ao pé da cama e apanhou-a; fora forte e vigorosa, mas agora era a mão de um ancião exaurido pelos anos e devorado pela doença. Os lábios se moviam, mas o Rei já não tinha voz. O sábio homem ao seu lado, porém, percebeu qual era a sua pergunta muda.
– Não, sua majestade – sussurrou. – Os soldados ainda não a encontraram. Eu lamento muito.
Seus olhos e ouvidos subitamente se voltaram para um som abafado que vinha de longe. O som transformou-se em baques surdos e por fim fortes, próximos, constantes, velozes: um galope.
O Conselheiro teve apenas tempo de levantar-se antes que as portas do quarto se escancarassem num estrondo sob o choque de cascos e revelassem o corpanzil de um belo corcel negro. O velho nada fez, por vontade própria ou incapacidade, quando viu o animal adentrar o aposento tendo em seu dorso uma menina. Ou antes, uma mulher: nua como um bebê, apenas os longos cabelos cor de ouro cobrindo mal e mal suas vergonhas. Ele reconheceu em seu rosto as feições da Princesa. Mas a filha do Rei era uma criança inocente e impetuosa, com a meiguice que a boa vida no castelo conferia; esta mulher tinha na face a dureza de um guerreiro e a determinação de um monarca.
– Sua alteza – guaguejou o homem. – Ainda vive. Abençoada seja!
Mas ela o olhou apenas por um instante antes de deslizar do lombo do animal para o chão, onde os pés descalços mal soaram ao pousar.
– Meu pai – disse, debruçando-se sobre a cama. O velho reconheceu a voz da filha, mas conteve o esforço de se mover ao avistar a cabeça negra que se aproximava da sua.
O chifre do Unicórnio reluziu à parca luz das velas e sua ponta tocou a testa do Rei. Repousou ali por um momento; o enfermo então sugou o ar com força, seu corpo magro se retesou e suas mãos se crisparam nos lençóis. Desabou suavemente na cama. Seus olhos se abriram morosamente e a boca tremeu, mas nada disse. Ele estava assombrado.
– Às vezes nós tentamos tomar pela violência aquilo que nos seria concedido de bom grado – disse a Princesa, afagando complacente as rugas do soberano. – Perde-se, assim, a honra. Perde-se a sanidade.
Então, voltou-se para o Conselheiro.
– Meu pai está curado – falou com autoridade. – Logo, estará de pé e forte como um varão. Mas precisa repousar ainda um pouco mais. Devemos deixá-lo.
Apanhou as cortinas do dossel e cerrou-as, isolando o rei convalescente.
– Sua alteza... – O velho enrubescia diante do corpo nu da mulher, mas ela já não sentia vergonha de sua nudez.
– Você desejava casar-me com o Príncipe Inimigo. Bem, eu o conheci, e não acredito que daria um bom esposo para qualquer mulher. Traga-me pois papel, tinta e pena; irei descrever, ato por ato, tudo o que ele e seus homens me infligiram. Quando meu pai acordar, você entregará minha carta a ele. O Rei fará o que desejar com esse conhecimento.
Os olhos do Conselheiro cresceram ainda mais de espanto e angústia.
– Sua alteza, o que ele...
– Apenas prometa.
– Eu prometo, minha Princesa – respondeu, submisso.
A mulher sorriu para ele um sorriso desconhecido: entre esperto e amargo.
– Sua Princesa está morta – disse. Subiu ágil para o dorso do corcel e acarinhou seu pescoço, deixando que suas mãos afundassem na crina densa. – Assim como o Príncipe Inimigo logo estará, se o Rei ainda for o homem que já foi.
O Conselheiro observou mudo enquanto a dupla saía a galope no mesmo caminho pelo qual havia chegado. Ficou vendo a Princesa, mulher, não mais menina, afastar-se pelo corredor montada no imenso Unicórnio de pêlo negro, os cabelos dourados, livres, selvagens, varrendo as costas do animal.
Ele então olhou para a janela, pensando que o paraíso de uns é o inferno de outros. O sol acenou detrás das nuvens, concordante.

FIM.

Acabou, pessoal.
A ilustração de hoje foi feita sob influência de um de meus artistas preferidos, Alphonse Mucha, mestre da Art Nouveau. Ô pretensão, hein?
Vocês, que acompanharam toda a série: captaram algo simbólico aí?
Me digam o que acham. Depois eu digo o que acho.
Apreciaria suas críticas, seja em forma de flores, seja em forma de pedras. O silêncio de vocês está sendo constrangedor, eheh.


 

StatCounter