quarta-feira, março 08, 2006

Nova Piada

Na verdade, é velha, mas o nome sempre foi esse.

Como que doente, afogada em meus próprios melindres morais,
Com movimentos hábeis e muito ilusionismo,
Furto-me ao convívio humano.
E nisto sou tão exímia que até ludibrio a mim mesma,
E pego-me a vigiar todos os cantos
E a indagar-me obstinadamente:
Onde diabos foi meter-se o mundo?
Mirei-me de todos os lados que me pareceram possíveis,
E tanto, que dei voltas em torno de meu próprio eu,
Procurando-o sempre e sempre a vê-lo somente de esguelha,
Feito cão perseguindo a própria cauda,
Até pôr-me tonta e estatelar-me no chão.
Cansei-me. Mas não se mata a sede com águas passadas.
Ó saudades do tempo em que qualquer espécie de maturidade
Não passava de um distante anseio!
Nem a presença das memórias
Pode restituir-me ao caminho em que eu ia,
Muito jubilosa, de encontro à superação do meu ser?
O que é mais jocoso nos meus dias
É imaginar que eu acreditava muito mais em mim mesma
Quando não era capaz de crer em nada mais.
E eu própria era a única coisa tangível
No exato momento em que acontecia:
Eu era o presente
E muito pouco alimentava
Em relação a passados e futuros...
A frustração sempre migra no inverno,
Mas retorna com uma nova piada a contar,
E nós passamos tardes nostálgicas juntas,
Fazendo gracejo daqueles que passam pela rua.
De nada vale descrever minha queda;
O homem só a reconhecerá quando cair.
Então, que não se deseje de mim que reconheça o perigo
Em todos os buracos nos quais nunca pus as mãos.
Deixai-me. Deixai-me, que não suporto estar só,
Mas minha pessoa é a única que não ouso xingar,
Pois é a única que sabe pouco mais ou menos
O que penso dela,
E, portanto, não tenho de lho comunicar.
Fico aqui a matar-me de ânsias de vos dizer o que sinto e penso,
Mas creio que o que eu vos puder contar
Soar-vos-á como grego. Nada direi.
Como poderia, com tal nó me apertando a garganta
– O nó da gravata da boa conduta?
Eu não consigo caminhar sobre as sapatilhas da convenção
Sem tropeçar,
Que os meus pés são turrões e tortos demais para tanto.
Deus me conceda forças
Para tolerar a hipocrisia institucionalizada.
Não posso declarar que estou infeliz, pois é ilógico
Que esteja triste e enraivecida,
Uma vez que todos os outros observam minha vida
E decretam que eu seja
Incondicionalmente feliz e apaziguada
E que decline do direito de queixar-me.
O fato, contudo, é que estou em brasas por dentro
E, mesmo assim, sou só risos frente à nova piada.
Por um momento, sou capaz de ouvir-me gritando,
Mas, logo que abro os olhos, vejo-me novamente
Disciplinada quanto aos meus paroxismos de ira
E impassível para com a chama que os acende.
Só me ponho séria quando estou furiosa
E somente por não me lembrar de como age
Uma pessoa qualquer, quando irada.
Repentinamente, odeio a todo o mundo.
Repentinamente, é-me impossível não odiar a todos,
Inclusive a mim mesma, como não poderia deixar de ser.
Encontro-me incapaz de amar qualquer um que seja.
Tenho a impressão de estar viva só por fora
E de, por dentro, viver só;
A rebuscada sensação de estar cercada de idiotas
E ser eu mesma nata e flor de todos eles.
Faço-me, então, de covarde e tapo os olhos
Para não ver quão pusilânime é o mundo.
Tenho lágrimas, mas onde derramá-las?
Não faleis comigo. Não hoje, por Deus,
E não canteis nenhuma canção que eu conheça,
Pois ainda pior do que ouvir o que dizeis
É escutar-vos repetindo o que disseram outros,
Ninguém sabendo ao certo o que foi que disse ou ouviu.
Papagaios! Não faleis comigo!
Saber de vós é sumamente desagradável.
Há coisas que aborrecem apenas porque existem.
Só se tolera aquilo que não se pode amar,
E eu não logro amar coisa alguma.
Isto é demais para qualquer um tolerar.
Essa incapacidade nos torna arrogantes, tão arrogantes!
Será que, para se recobrar a humildade primeira,
É preciso passar por mil calvários?
É possível manter-se a soberba sobre um ego degradado?
Procuro em mim um aspecto pelo qual possa ser observada
Com um sorriso, mas meu aspecto geral
É o da doente que já se anestesiou para sua moléstia;
Do corpo que já suporta, sem ais, a tortura;
Da flor que esteve durante tanto tempo entre espinhos
Que se tornou também espinho;
Do janeiro que puxou fevereiro e março e abril,
E, mesmo assim, não deixou de ser dezembro...
Não faleis de mim, que não sabeis a metade
Da verdade em vossas palavras.
Não sabeis a metade do significado de mover os lábios e falar!
Deixai-me só, que eu odeio estar só comigo,
Mas sou só eu e meu eu como fera e gladiador na arena,
E ambos de olhos vendados,
Sem poder reconhecer um ao outro.
Vindes oferecer corda ao enforcado?
Dai meia-volta com vossa solicitude;
As vagas de vilão e vítima já foram devidamente preenchidas
Por alguém com os naturais requisitos para tanto.
Não admito que me maltrateis. Se devo arder,
Há de ser sob minha própria guasca.
Quem deseja ajudar-me, que traga, por obséquio,
Um espelho que não seja pago para mentir.
Ou, então, que me deixe em paz em meu canto,
Onde eu possa ficar latindo atrás do carro fúnebre
Que leva o meu finado senso de direção.
Ou, ainda, eu gostaria de miar pela casa vazia.
Queria ser como os gatos,
Para pular por sobre as coisas, não passar por baixo delas.
Se não me podeis dar nada disso, nada quero;
Eu é que vos fornecerei uma boa apresentação
De rudes improvisos e ditos constrangedores,
E, em me mostrando assim tão estúpida,
Dou-vos a saber que somos idênticos!
A nova piada é que insistimos na mesma velha piada.

07.1998 (Falei que era velha.)


 

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