sexta-feira, junho 30, 2006

O Sabor das Primeiras: Capítulo 2

Garotas, pesadelos e uma xícara de chá

Liliana ficou sentada durante o que lhe pareceram horas diante de Laura. Não se olhavam nos olhos, mas mediam-se repetidamente.

Apesar do rosto bonito, Laura tinha o olhar arisco dos que aprenderam a desconfiar. Era magra e um tanto abatida, como alguém que se recupera devagar de uma doença ou já aceitou a presença definitiva desse mal. A hostilidade era mútua e óbvia, mas a civilidade as obrigava a manter a cortesia.

A garota contou uma história que soava como pesadelo. Passou por corredores escuros e quartos com cheiro de mofo e vodca, sangue e carne queimada. Falou de crianças, de monstros, de vaidade, mentiras e pavor.

Liliana estava fascinada. Ao mesmo tempo, perguntava-se se ela não teria sonhado tudo aquilo. Continha-se, interrompendo-a apenas com perguntas inevitáveis. Quando Laura parou de falar, Liliana ainda ficou em silêncio, esperando que continuasse.

– E então? – perguntou, afinal.

– Então o quê?

– Você nunca mais os viu?

– Nunca mais os vi.

– Então, não sabe se eles estão mortos.

Laura sorriu amarga e mexeu o resto do chá outrora quente. A colher tilintou irritante na xícara.

– Ah, estão mortos, sim – respondeu.

– Como pode ter certeza?

Desta vez a garota a encarou intensamente detrás dos fios rebeldes e louros que lhe caíam sobre a testa.

– Se estivessem vivos – disse –, eu não estaria mais.

Liliana olhou ao redor, sentindo-se um tanto perdida.

– Agora não sei como faço para encontrá-los – disse mais para si mesma do que para a outra.

– Encontrá-los? – Laura desceu a xícara contra a mesa com mais força do que tencionara aplicar e deu vazão à sua antipatia. – Você é louca, menina? Todo dia eu acordo imaginando se não vai ser o último, se eles não vão mesmo voltar, se outros vão aparecer pra se vingar... Você devia ficar feliz por não estar no meu lugar!

Liliana levantou-se, simulando uma calma que não sentia, e disse, tentando controlar o tom:

– Pois fique sabendo... se eu estivesse no seu lugar, não teria sido trouxa como você. Sabe há quanto tempo eu procuro pela chance que você teve e não aproveitou? Não tem a menor idéia do que desperdiçou. Mas um dia vai se arrepender. – Tirou da bolsa, num gesto magnânimo, dinheiro suficiente para pagar pelos pedidos de ambas. E acrescentou com um meio-sorriso: – Obrigada pelo seu tempo. Fique bem, viu?

Nunca procurou novamente por Laura. Como era limitada! Todas as pessoas que havia conhecido até então eram limitadas. Incapazes de compreender o destino quando ele se apresentava diante de seus olhos.

Tinha a esperança de encontrar alguma diferença quando conheceu Renata. Estudavam na mesma faculdade e um colega em comum, divertido com as ambições de Liliana, as apresentou.

– Estou no curso de Biblioteconomia – disse a garota de cabelos curtos, ajeitando os aros finos do óculos. – Você faz Jornalismo, né?

Liliana percebeu logo que nada havia a temer dessa criatura nos seus vinte e poucos anos e trajes recatados, que tomava notas, sabe-se lá do quê, enquanto falava, levantando vez por outra os olhos mansos e espertos.

– Isso – Liliana respondeu entediada, pensando no dinheiro que o pai insistira em “investir”, como dizia, “em seu futuro”. Resolveu que o intervalo entre as aulas era muito curto para perder tempo com futilidades e resolveu partir para o que realmente lhe interessava. – O Paulinho me disse que você tinha uma história interessante pra me contar...

– Ah. Certo. Você é a menina que anda atrás de vampiros, né? Senta. Vamos conversar...

Renata é a evolução da protagonista do conto A casa dos fundos (não confundir com A casa dos loucos), no qual ela, então com 16 anos, relata uma história semi-erótica em que... bom, vocês vão saber na semana que vem, no terceiro capítulo: Copos, crenças e um cartão de visitas. Quem quiser relembrar A casa dos fundos, clique aqui.


 

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