sexta-feira, julho 07, 2006

O Sabor das Primeiras: Capítulo 3

Corpos, crenças e um cartão de visitas

O tom de Renata era tranqüilo demais para um assunto tão sério, mas não chegava a ser de deboche.

– Sabe – disse ela –, não sou uma pessoa muito impressionável, mas também não sou totalmente cética. O ser humano pretende explorar e catalogar tudo o que existe dentro dos armários da ciência, mas certas coisas simplesmente... simplesmente não cabem na prateleira. Não se encaixam em categorias parecidas. Não se classificam. Deus, por exemplo. Sabemos que ele existe, mas nossa ciência não é capaz de desvendar o que Ele é. – Fez uma pausa e olhou nos olhos de Liliana com determinação, como que orgulhosa das próprias palavras e da atenção que elas haviam cativado. Como a outra nada dissesse, ela presumiu concordância e assumiu um tom de divertida confidência. – Há uns anos, tive uma vizinha que morava sozinha numa casa nos fundos da minha. Trintona. Um dia ela levou pra casa um cara diferente. Tinha uma coisa especial nos olhos, no jeito de se mexer, não sei. Um moreno de cinema, sabe? Ele... bom, ele se insinuou pra mim, mas passou a noite em claro com a Clélia, a vizinha. Pelas paredes dava pra ouvir os dois transando, bam, bam, bam! E fazia aquele calor. Eu não preguei um olho. Ainda vi o cafajeste sair de madrugada, já tinha até a chave do nosso portão. Mas depois disso ninguém mais viu a Clélia de novo. Quero dizer... – Renata engoliu em seco e sua voz baixou alguns tons – eu vi.

Liliana não fez mais do que erguer uma sobrancelha e abrir bem os olhos, indicando seu interesse. Bastava de perguntas tolas; estava ali para ouvir a história completa.

– Acabei indo pros fundos ver se ela estava lá – continuou a futura bibliotecária – porque o telefone dela não parava de tocar e ninguém atendia. Já até tinha gente ligando pra minha casa pra ver se eu sabia dela. Daí, entrei no quarto e... bom... só o que tinha sobrado dela era um corpo. Todo seco. Parecia, sei lá, que só tinha pele e ossos. Era como se tivessem tirado todo o recheio.

– Tem certeza? – perguntou Liliana.

– Como, “tem certeza”? Eu sei o que vi. Nunca vi nada parecido nem antes nem depois disso. E Deus me livre de ver. Aquilo não era normal. Nem a polícia soube explicar.

– E você acha que quem fez isso com sua vizinha foi um vampiro.

– Não, não acho.

– Não?

– Não. – Renata ajeitou de novo os óculos. Tinha agora um ar distante.

– O Paulinho me disse que você era a pessoa certa pra falar de vampiros – Liliana justificou-se.

– O Paulinho é xarope mesmo! Manda ele te levar a uma festa pra você ver. Pra mim, ele só disse que tinha uma menina procurando uma história sobrenatural. Não digo que nada disso seja sobrenatural, mas pra tudo o que não tem explicação nós damos esse nome, não é? Então, presumi que você queria escrever uma matéria ou algo assim. Só sei que não conheço nenhuma forma de um ser humano fazer aquilo com outro. A única conclusão que posso tirar é que o cara que a Clélia levou pra casa não era humano, ou não usou de meios humanos pra fazer o que fez. O que ele era já é outra história.

Liliana pensou por alguns instantes.

– Pode ter sido um vampiro – murmurou mais para si mesma. – De um tipo diferente. Algo que eu não conheça. Ainda não sei tudo. Estou procurando. Estou...

– Está obcecada, isso sim – respondeu a outra abrubtamente. – A única coisa que dá pra saber é que o cara não era normal. Só por isso você já acha que é um vampiro? Podia ser qualquer coisa, meu Deus do céu. Por acaso vampiros têm um aspirador de carne dentro da boca ou algo assim? Que eu saiba eles só bebem sangue. Isso é, se formos admitir que eles existam. E eu não admito.

– Por que não? – Liliana ergueu as mãos espalmadas, incrédula.

– Por que sim? – respondeu Renata no mesmo tom.

– Porque eu acredito. Você não acredita em Deus? Por que eu não posso acreditar em vampiros?

– Menina, você pode acreditar no que quiser – Renata respondeu tranqüilamente. – Em ET, em saci, em vampiro. Mas Deus pra mim tem uma utilidade. Que utilidade um vampiro tem pra você?

Liliana lançou-lhe um olhar arisco.

– Você não poderia entender.

– Nem quero. – Renata levantou-se sorrindo, o grosso fichário da faculdade sistematicamente amparado sob o braço. – Cada um olha pro mundo e vê o que quer – disse, e, consultando o relógio de pulso, adiantou-se de volta à sala de aula.

Liliana suspirou, levemente raivosa. Sentia-se cercada de imbecis.

Não foi muito diferente com a matadora. Sim, a matadora; vibrou ao ouvir o termo, imaginando mil possibilidades. Mas, no cartão que o rapaz da livraria lhe passou, não havia profissão ou especialidade; apenas um número telefônico e um e-mail abaixo do nome Dora Cruz.

Quem leu o conto Ponto-Final tem uma boa idéia de quem vai aparecer na semana que vem, no Capítulo 4: Telefonemas, Colhões e um Bloody Mary.

Pra quem não tiver lido ainda Ponto-Final, eu posto na semana que vem. Continuem acompanhando O Sabor das Primeiras, que está chegando à sua - acredito - inesperada conclusão!


 

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