quinta-feira, julho 20, 2006

O Sabor das Primeiras: Capítulo 5

Noites, encontros e aliados improváveis

Se você duvida, eu posso provar, ele disse há algumas horas.

Mas se for mentira, apressou-se ela em responder, você vai ver.

Ameaças, minha querida? Tão cedo? Talvez você precise de uma lição. Que vou adorar te ensinar, caso você me dê o prazer da sua companhia. Por que não vem se encontrar comigo hoje à noite?

Foi Dora Cruz quem lhe deu o telefone de Saul. Deve ser piada, foi a primeira coisa que pensou. Mas compreendeu que sua ousadia e determinação lhe haviam garantido o respeito de Dora e com isso o contato por que tanto ansiava. Ela sabe tudo do assunto, não sabe, essa tal Dora? Não ia pensar em tapeá-la depois de ver que Liliana falava sério.

O mundo é dos ousados. O Poder é para aqueles que se atrevem a buscá-lo, ela repete consigo, como já fez tantas vezes. É sua frase de efeito preferida, que utiliza como assinatura em seus e-mails e principal rabisco nas capas dos cadernos.

Concluiu naquele ano o colegial e acreditou que com isso daria adeus àquele mundinho estreito e sem-graça dos adolescentes, dos filhinhos de papai do colégio pago, aquela gente cheia de dinheiro e maus hábitos e nenhuma ambição. Nenhuma visão.

Mas Liliana tem visão. Tem um objetivo. Sempre o teve, mesmo antes de se dar conta disso. Objetivos inalcançáveis para pessoas comuns e suas mentes restritas.

Sim. Liliana quer ser uma vampira. E está prestes a conseguir.


Breve interlúdio


Ela está de costas. Cabelo ao vento. Ele se aproxima devagar. Sem som. Felino; para a maioria das pessoas, sua presença é uma surpresa. Para ela, um costume que já não espanta.

– Pode parar de andar na ponta do pé, Fabiano. Eu não caio mais nessa.

– Muito bem, você me pegou.

– Foi seu bafo que te denunciou.

– Larga de ser ranzinza. Eu só ia brincar com você. O que é um sustinho entre amigos?

– Considerando a espécie de amigo que você pode ser, qualquer vacilo é sentença de morte.

– Garota esperta.

O rapaz pára ao lado dela, os cabelos claros arrepiados, os polegares encaixados nos passantes do jeans. Não a encara. Olha para baixo. Lá na rua, os carros parecem brinquedos luminosos numa pista em miniatura. Ele sorri.

– Que história é essa de marcar encontro em topo de prédio, Dora?

Olhos oblíquos, pretos, o observam de soslaio.

– Vocês gostam dessas coisas, não gostam? Topo de prédio, alto de torre, ponte deserta... tudo bem dramático.

– Eu não gosto. Isso é coisa da Marisa.

– Marisa e seu teatrinho.

– Não fala nada da minha namorada, Dora. Você pode não ter medo de mim, mas com ela, tem que tomar cuidado.

Desta vez o rosto da mulher se volta para o dele. Seu sorriso é de curiosidade e deboche.

– É mesmo? O que é que ela pode fazer, Fab? Quebrar o nosso pacto? Eu adoraria ver isso. Não me provoca, vai, lindo.

Fabiano suspira. Não quer navegar por esses mares.

– Por que você me chamou aqui, Dora?

– Pra te avisar. – Ela mete a mão no bolso de trás da calça e tira de lá um pedaço de papel. – Tem uma pessoa que está atrás de vocês.

– De mim? Da Marisa?

– Não. De vocês, da sua gente. Aqui, entenda “gente” como termo respeitoso mas inadequado.

– Dora...

Há censura na voz do rapaz. Ele bem poderia soltar um palavrão, mas ela coloca o papel em sua mão. Pelo tato, é uma foto. Ele a traz para junto dos olhos. A mulher continua.

– Mandei ficarem de olho nela. Tiraram essa foto pra mim na porta de uma boate. Essa menina é xarope. Está procurando um vampiro. Qualquer um. Não precisei pensar muito pra sacar qual é a dela. Se conheço o tipo, não vai desistir até se ferrar de verdade, ou pior, machucar mais alguém no processo. Você é conhecido na noite. Ela é persistente, vai acabar te achando. O nome dela é...

– Liliana.

– Hã?

– É a Liliana! A Lilica!

Fabiano ri, olhando a foto segura nas duas mãos. Dora não compreende e apenas fita.

– O cabelo tá diferente, mas é ela mesma.

– De onde você conhece a Liliana?

– Da noite, Dorinha. De onde mais? – Nova torrente de risadas toma o alto do prédio e é abafada pelo vento gelado da cidade. – Enquanto você vai, eu já estou voltando, querida. Conheci a Liliana no ano passado. Cheia de sonhos. Um pesadelo de menina. Lindinha. Burra e esperta de uma vez só. Quer dizer que ela continua nessa cruzada pós-moderna pirada? E eu que pensei que tinha convencido a menina de que ela não nasceu pra coisa.

– Acho que não convenceu. – Dora usa um tom casual, mas não sabe ocultar a surpresa.

– Longa história.

– Um dia você me conta. O caso é que ela pode te procurar de novo. Vai saber. Se ela aparecer, não dá atenção, OK? Despista a mala.

Os olhos dele destilam malícia. Quase lambe os beiços de prazer.

– Da outra vez eu quase matei a menina de medo. Foi muito divertido. Se ela for trouxa o suficiente pra vir atrás de novo, então ela merece o repeteco. Por que eu iria perder essa oportunidade?

Dora se aproxima devagar do rapaz. Tão devagar que poderia morrer numa reação dele. Tão próxima que poderia beijá-lo. Mas ele a encara e não se move, e ela não faz nenhuma das duas coisas. Apenas diz:

– Porque você não é tão idiota quanto gosta de parecer, Fabiano. E porque mesmo que você fosse, a Marisa tem cérebro suficiente pra não me provocar. E se a vida dela é um teatro, você é um fantoche, e faz o que ela quer. Né, bonequinho? E ela faz o que eu digo, porque gosta de viver. E vocês só estão vivos porque nós temos um pacto. Você não mata e não morre. O diabo sabe lá como vocês têm sobrevivido, mas sei que não estão matando e continuo de olho em vocês dois. Em vocês todos. – Seu dedo indicador, nervoso, finca-se sem intenção no peito do rapaz, que vacila, mas não recua. Ela toma fôlego. – Meus olhos estão por toda a cidade. Você sabe disso. Continue não matando e continue não morrendo. Somos amigos. Mas se eu souber que você machucou de verdade alguém, nem que seja essa putinha retardada da Liliana, eu estouro essa sua boca de sanguessuga. Detono tanto a sua cara que você vai ter que tomar sangue por via retal. Gostaria disso? Gostaria? Hein?

Dora ofega; ele conhece o frenesi em sua voz e não responde. Ela reconhece a própria euforia. Ódio, talvez, ela pensa; talvez o odeie. Não seria ruim nem inapropriado. Ruim seria amar a idéia de odiá-lo e cumprir as palavras ditas sem pensar. Não morte, mas violência; não castigo, mas tortura.

Ela se sente suja. Por sorte, seu rosto é moreno demais para corar.

– Dora Doriana – murmura o rapaz. – Quanta paixão. Se eu não adorasse a Marisa, arrancava sua roupa e te traçava aqui mesmo.

– E eu arrancava suas bolas. Me jogo deste prédio antes de trepar com sanguessuga.

– Isso pode ser arranjado.

– Vai se danar.

Não há mais emoção em suas vozes, só tédio. Costume. Já não podem impressionar um ao outro. Ela permanece parada na borda e ele se retira a passos lentos. Abre a porta da cobertura, mas antes de desaparecer pela escada, seus olhos se acendem.

– Dora? – Agora ele é polido, quase doce.

– Hm?

– O que você falou pra Liliana?

– Nada demais.

– Conta, vai. Eu vou colaborar. Prometo.

A mulher vira o rosto, deixando-o ver que sorri maliciosamente.

– Dei pra ela o telefone do Saul.

Silêncio no topo do prédio.

– Você é louca, Dorinha.

– Relaxa e assiste, moleque. Se eu conheço o Saul, vai valer cada segundo.

Ela ri. Ainda ri quando Fabiano some pela escada escura do velho edifício.

Dora gosta dos prazeres solitários.


Fim do interlúdio

Liliana pára diante da boate e respira fundo. O lugar é bastante estiloso. É pop; nada como os buracos a que Fabiano a levou. Talvez seja um bom sinal.

Que aspecto terá Saul? Liliana diz a si mesma que se for um charlatão ela fará uma cena inesquecível. Bem pior do que a do boteco na semana anterior. Não está aqui para ser objeto de chacota.

Ela alisa o tecido da blusa sobre a barriga, ajeita o decote generoso – já ganhou outros com a visão do belo colo cor de leite, sempre se deve tentar...

Confiante, mostra o RG ao segurança de terno. Ele ergue a cortina preta da porta. E Liliana entra.


Neste capítulo mais longo do que o comum e antecipado - entrando na quinta-feira e não na sexta - revemos Fabiano, o vampiro mais pentelho que já caminhou sobre a face da terra. O rapaz foi o céu e o inferno de Liliana em Caia na Noite. Quem não leu, já sabe, tá no blog, corre atrás. E na semana que vem... ah, vou deixar vocês imaginarem o que vai rolar.


 

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