terça-feira, agosto 22, 2006

O Sabor das Primeiras: Capítulo 6

Após vergonhoso atraso de várias semanas...


6. Virgens, vampiros e um cigarro de canela

O interior do lugar é apenas o que ela espera: luzes oscilantes, gente bonita, gente feia, todos forcejando uma aparência autêntica, mas, como à noite os gatos são pardos, isso não é tão importante na escolha dos pares. E os pares vão se formar naturalmente, desesperadamente, talvez, à medida que a festa for chegando ao fim e os solitários forem sendo ainda mais. Os critérios ficarão frouxos. Liliana observa tudo e pensa em placebos para uma doença chamada mediocridade – que ela está prestes a curar.

Procurará pela pista de dança mais tarde, quem sabe com ele, Saul, se ele gostar, se quiser dançar, ela espera que sim, pois sabe laçar um homem com os passos, e terá de laçá-lo de alguma forma. Ele tem de ser bonito; no mínimo, charmoso.

Ele disse que estaria numa mesa nos fundos e que ela iria reconhecê-lo por estar com um livro nas mãos. Quem levaria um livro a uma boate? Alguém que consiga ler na penumbra? Alguém que goste de chamar a atenção. As duas alternativas agradam Liliana. Seus olhos percorrem depressa a multidão, grupos de amigos rindo numa embriaguez precoce, casais entrelaçados num ensaio de alcova, e nos fundos o rapaz sozinho, livro nas mãos, lendo ou fingindo ler.

Ela se aproxima, e quando não está a menos de dois metros da mesa ele ergue os olhos, como se soubesse, e talvez saiba. Ele sorri. O sorriso é discreto, não revela coisa alguma. Isso a intriga. Seu estômago está gelado.

Saul se levanta. Diz um olá, mas não puxa a cadeira para que Liliana se sente. Deixa que ela o faça sozinha. Mas só volta a sentar-se quando ela já está acomodada. Quase um cavalheiro, mas não está aqui para servi-la, que fique claro.

Agora ele está diante dela, só a mesa os separa, e ela o examina sem pudor. Os cabelos, cortados bem curtos, são pretos – é claro que são – assim como a pele é tão clara quanto ela desejou. Mas os olhos não são azuis, nem verdes, nem cinzentos ou cor de mel, apenas castanhos como os dela. Um pouco rasgados; não asiáticos, mas de algum modo felinos, lânguidos, mas atentos. Isso é bom. É o que ela espera. É o que quer. Está satisfeita e deixa que ele perceba.

– Então você é o Saul.

– Então você é a Liliana.

O olhar dele é intenso, ofusca, e Liliana desvia o seu para o livro. Está escuro demais e ela não pode ver o título.

– Bebe comigo, Liliana? – Ele faz sinal para um garçom, que demora a vir. – Bem. Parece que a... Dora... te falou de mim, não foi?

– Mais ou menos.

– Mas ela com certeza me falou de você. E sugeriu, apenas sugeriu, que talvez eu possa resolver seu problema.

Liliana o examina de novo, sem saber se é suspeita ou ansiedade o que experimenta. Decide arriscar.

– E você pode? – pergunta.

O garçom se aproxima da mesa.

– Vodca com gelo.

– O mesmo pra mim. – Liliana nunca bebeu vodca pura, e quando Saul sorri de lado a garota percebe que ele sabe disso. Mas nada diz e espera o garçom se afastar. Inclina-se na direção de Saul e repete:

– Você pode?

Saul se recosta preguiçoso na cadeira. Liliana não compreende se há desdém na sua atitude. Tudo o que ele diz e faz parece afetá-la em duas vias. É gentil e distante.

– Posso – responde certeiro. – Não sei se vou. Mas você pode tentar me convencer.

De novo, não, pensa Liliana, e dispara:

– Olha, eu não tenho paciência pra joguinhos. O que você quer?

Ele desliza na cadeira. Num movimento seguro, sem desviar os olhos, tira do bolso da calça uma cigarreira de metal, artigo fino, não é para pobretões. Abre-a, oferecendo a Liliana o que parecem ser cigarros especiais. Ela apanha um em desafio. Ele pega o seu e fecha a cigarreira. Acende os dois com um Zippo. Gosto e cheiro de canela.

– Aposto que já arrumou muita encrenca com essa impaciência natural – comenta, despreocupado. – Também não estou aqui para jogar, Liliana. Mas concorda que, se o que você procura é algo especial, e o que eu tenho a oferecer é algo especial, não posso entregar a qualquer pessoa? É como a virgindade de uma garota. Diga, querida. Você é uma virgem?

– Você é um vampiro?

– Você é uma virgem.

– E você não é um vampiro.

– Não? – Nenhum músculo do rosto de Saul se altera, nada em seus gestos se abala. –Talvez não da forma como você pensa que eu deveria ser. Mas certamente eu sou.

– Se você é, prove.

– Prove, você diz. Espera que eu vá até ali e morda dois ou três pescoços no meio da multidão? Isso seria estúpido da minha parte e muito egoísta da sua. Não estou aqui para te convencer, menina, nem para te agradar.

Enquanto fala, Saul mantém o tom cordial, sem ofensa, sem emoção. Ele não se importa com o que Liliana pensa, e isso é grave. É arrogante e adorável.

Ela respira fundo, olha para os lados. Não sabe por onde seguir, em que gancho se amparar na conversa que não parece promissora, mas ele a salva desse transtorno.

– Estou aqui pra te conhecer – diz.

– Como é?

– Qualquer pessoa com a sua determinação merece ao menos ser conhecida. – Ele se inclina para a frente e, subitamente, Liliana sente que há esperança, apesar de todos os rodeios. – Quando Dora me falou de você eu sabia que não estávamos falando de uma menina que a gente vê todo dia. – Os dedos dele, brancos, longos, roçam de leve nos dela, de propósito ou não, e ela se sente fria e quente a um só tempo. – Por enquanto só posso te dar dois conselhos. Está pronta?

– Estou – ela responde sem nenhuma certeza.

– Primeiro, seja paciente. Tudo o que deve acontecer acontece na hora certa e não cabe a você apressar o tempo. A gente aprende isso após alguns séculos de... bom, você entendeu. Segundo, levante e venha dançar comigo.

O último “conselho” a pega desprevenida, mas ela não hesita quando ele a toma pela mão e a conduz para a escada que leva à pista de dança, subterrânea, de onde uma batida surda, lenta e ritmada escapa para o bar. O livro fica abandonado na mesa.

Saul é bom de papo, ela se convence, e bom de passo também; devagar, mais seguro do que a maioria dos rapazes, não excessivamente elástico. Isso vai bem. Mas ela ainda não está segura; ainda não tem poder sobre ele, como teve antes sobre um ou dois namoradinhos do tempo do colégio. Os meninos faziam o que ela queria. Essa sempre foi a serventia da beleza. Aqui, tudo saiu ao contrário do que ela planejou. É ele quem subjuga e conduz. Ele não a adora instantaneamente; talvez nem a deseje, talvez só vá brincar com ela, rasgá-la em duas no corpo e na alma e abandoná-la como dejeto, como Dora disse que eles faziam. Ou quem sabe não é um mentiroso? Bem, mas por que alguém diria que é um vampiro sem sê-lo?

É cedo para tantas respostas, e Liliana decide ouvir o primeiro conselho. Paciência, mesmo no risco.

Saul não demora, seu corpo agora está muito junto ao dela, e ele repete a pergunta no seu ouvido.

– Diga, Liliana. Você é uma virgem?

– Isso é importante?

– É importante que eu seja um vampiro?

– Totalmente.

Ele parece pensar antes de dar a resposta que ela cobra com os olhos atrevidos.

– Não é nada importante que você seja virgem – decide. – Mas acho que logo vou descobrir.
O frio-quente de novo invade as entranhas de Liliana; ela se sente vulnerável, nua, e isso a envergonha, e a delicia também. Antes que pense melhor, ele está segurando seu queixo, firme, enquanto a outra mão pousa leve em sua cintura. Ela não cogita resistir ao beijo, mas a pergunta escapa de seus lábios:

– Você é...?

– Eu sou o que você quiser.

A boca de Saul tem gosto de canela. O corpo dele também.


No próximo capítulo... que tal um pouco de putaria, digo, ação? Quem viver, verá.


 

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