segunda-feira, abril 02, 2007

Chuva vem (conto)

Chuva vai, chuva vem, e eu aqui sem um vintém.

Aprendi esse verso com a minha mãe. Não lembro o resto. Mas ela cantou muito isso antes de morrer, se é que morreu. Ela sumiu, mas eu já era homem, né? Ela podia ir. Falava que eu era especial, e sou mesmo. Não vou ser pobre a vida toda, não. Eu sempre soube que era diferente. Quem olha pra mim também sabe. Só não sabe dizer por quê. Mas nota.

Minha mãe dizia que eu tinha que ser mais esperto do que ela. De que jeito? Ninguém nunca teve uma mãe esperta que nem a minha. Tudo que eu tinha que saber ela me ensinou. Me ensinou a arrumar o que comer. Me ensinou que não adianta ter medo da chuva, porque ela vem, depois vai, e vem de novo, e o dia hoje tá assim. A gente acostuma com o chuvisco. Até gosta. Ainda mais no calor. Faz de conta que é banho. Só tem outro banho quando aqueles monges de roupa marrom passam com a bacia d’água querendo fazer, que nem eles falam, a nossa “higiene”. Outro dia, lá na Sé, o moço me lavou a cabeça e me fez até a barba. Fiquei bonitão. Podia até arrumar emprego, mas pedem o endereço da gente, e isso aí eu não tenho.

Já o tal de vintém eu nunca vi. Acho que é um dinheiro. Minha mãe devia saber o que é. Ela sabia tudo que dá pra saber desse mundo. Eu só conheço centavo e real. Dólar também. Uma vez uma gringa me deu um dólar. Tenho ele até hoje. A molecada do Anhangabaú pede pra ver de vez em quando. Quando mostro a nota, invento uma história nova de como ganhei ela e eles tudo lá acreditam. Tô morrendo de fome, mas esse dinheiro eu não gasto. É lembrança. A gringa tava bêbada, mas era muito da gostosa.

Então, de noite, vou pro Mercadão ver se sobrou alguma coisa. É meio longe, mas eu gosto de andar. Chego lá, já levaram tudo. Só tem alface pisada no chão. Não agüento comer mato. Não sou boi pra comer mato! Queria carne. Vou seguindo meu caminho, ver se acho o povo que vem de Kombi dar sanduíche pra gente. Se tiver de presunto… Onde será que eles tão hoje?

Se bobear, encontro a Marildinha. Ela é magra que nem uma tripa, mas é gente boa. Os meninos dela pedem grana no cruzamento. De vez em quando consigo pegar o dinheiro e comprar comida pra gente, senão ela gasta tudo em pinga. Ela teve nenê de novo faz uns meses aí. Não era meu, não, Deus me livre. Ela tava tão bêbada aquela vez que nem viu quando o nenê sumiu…

Não acho a Marildinha no sinal. Arranjou homem. Botou os moleques pra fora do barraco e ta lá dentro fazendo outro. Mais um passa-fome. Pelo menos ela também ensinou eles a gostar da chuva, que tá caindo de novo. Chuva vem.

Saio andando de novo. Pior agora. Além de tá com fome, também tô a fim de mulher. Ai, um pão com carne agora, e um chamego.

Daí eu topo com a Zu. Chegou esses dias. Ninguém conhecia. Ela anda dormindo no banco da pracinha no Anhangabaú. Veio pra cidade atrás do marido, falou. Não achou. Tá sozinha, e de vez em quando fica chorando. A gente até que fica com pena, né, mas tanto pobrema mais importante e a menina aí feito besta…

De vez em quando a Zu me olha engraçado. Vai ver ela sabe que eu sou diferente. Acho que eu também olho engraçado pra ela. É jeitosinha.

Eu tô a fim de mulher. Ela, com saudade do homem.

Faço ela chegar pra lá, sento no banco com ela. Deixo ela chorar no meu ombro. Tá com ranho no nariz, mas não ligo, não. A chuva tá parando de novo. Falo pra ela parar de chorar e a tontona me dá um beijo.

Eu lembro das coisas que a minha mãe me ensinou. Tudo direitinho. Sei o que vou fazer. Olho pros lados pra ver se não tem ninguém olhando. Não tem. É agora, minha mãezinha, é agora…

Eu até que gostava da Zu, mas, que nem o povo diz, foi melhor assim. Pelo menos ela não vai chorar mais. E eu também vou passar aí uns quinze dias sem ter fome de novo. Ô coisa boa!

Agora, é a parte chata: arranjar lugar pra esconder o resto da menina. Será que passa lixeiro hoje?

Chuva vai…

Este conto foi originalmente publicado no dia 15 de março em Novas Visões de São Paulo, o blog que está sacudindo a literatura paulistana. Passe por lá e confira o trabalho de 15 diferentes autores!


 

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