sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Reflexões de última hora pra quem escreve ou lê horror.

Sou sempre a primeira a dizer pro leitor: não confuda autor com personagem.

Mas, ao mesmo tempo, acho impossível escrever algo que não carregue muito do que sou, ainda que apenas sutilmente. Tenho a impressão de que isso vale para todo autor.

Toda vez que escrevo um texto violento eu digo pra mim mesma: isto não sou eu, é outra pessoa. Mas será mesmo?

O que escrevemos de terrível e cruel são coisas que existem em nós, gostemos ou não, ainda que só na teoria e nunca na prática. Talvez seja escrever aquilo que nos salva da prática.

Talvez, sem isso, enlouquecêssemos.

E um dia ainda havemos de.


Tá. Eu não posto mais nada hoje. Prometo.

O Chifre Negro: Capítulo 4


No mal, a cura.

Ali, na outra margem, oculto nas sombras das árvores frondosas como um rei sob o dossel de sua cama. Ali estava ele. Negro, ainda vigoroso, mas combalido. Estava deitado em suas próprias patas dobradas, a cabeça baixa, como a suportar o peso de um grande sofrimento. Seus olhos estavam fechados; seu peito, perfurado ainda pela flecha.
Por um instante ela não se moveu e nada disse. Seria o Unicórnio capaz de perceber sua presença? Teria ele agora um ódio ferino, mortal, por sua figura? Perguntas que a distância e o silêncio não poderiam responder.
A Princesa pôs um pé na água, sentiu-a fresca; depois, o outro, e pisou com cuidado as pedras lisas do leito do lago, experimentando sua profundidade. Logo suas pernas sumiram e suas roupas, se ainda era possível chamar roupas aos trapos que arrastava, se enfunaram na superfície da água. Seu corpo afundou até a altura do peito e ela sentiu o frescor afagar sua carne ferida. O que restara do seu vestido só fazia transtornar-lhe o passo. Livrou-se então dos andrajos, que escorregaram brancos e leves no espelho prateado do lago feito nuvens no céu cinzento. Quando alcançou a margem rasa, estava nua; sentia-se limpa.
O Unicórnio finalmente ergueu a cabeça e a viu, mas nada fez para defender-se ou atacá-la. Observou enquanto ela saía da água. Seu olhar não falava de traição ou vingança. Apenas fitava. O peito estremecia com a respiração sôfrega. A ferida não sangrava mais, mas a flecha estava ali, fincada, dolorosa.
A Princesa se aproximou e se ajoelhou devagar diante da criatura. O animal que ela desejara domar e matar e pelo qual se embrenhara no Bosque Escuro e perdera sua virtude agora estava ali, uma vez mais à disposição de sua compaixão – ou de sua crueldade.
– Na clareira – ela murmurou – eu o traí, e você me deixou viver. Você deveria me odiar, mas não vejo ódio em seus olhos. Eu perdi tudo caçando-o. Também deveria odiá-lo. Mas...
Ela deteve a própria voz, tocando na flecha com os dedos finos que lentamente a envolveram e com força começaram a puxá-la. O Unicórnio bufou e se remexeu, mas não se ergueu ou saiu do lugar. A dor arrancou dele um relincho sofrido, e o esforço fez a Princesa grunhir, mas a flecha por fim soltou-se do corpo negro. Respingos de sangue pintaram o rosto da menina e um fio ainda escorreu da ferida. No entanto, livre da flecha, a carne do forte animal se curaria sozinha.
A Princesa então terminou sua sentença:
– Não o odeio. Queria domá-lo, mas fui domada. Como você, fui atraída, emboscada e ferida – no corpo e na alma. Só agora compreendo o que disse meu Conselheiro. Nós somos iguais.
Ergueu-se e acariciou a testa aveludada do animal, que esticou o pescoço em sua direção. A ponta do perigoso chifre pousou com suavidade no queixo da menina; depois, deslizou para o ventre. O toque a envolveu num calor momentâneo e bem-vindo. E ela não sentiu mais dor.

Na semana que vem... Final. Feliz? Só passando por aqui pra saber. Espero vocês.

À toa...


Desenho velho. Fiz à toa em cima de uma foto da Zizi Possi. Acabou ficando bacana.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

A Lápide - o filme





Amigos,

O há muito prometido filme "A Lápide" está concluído. É um curta-metragem de 2 minutos baseado em meu conto homônimo que está em diversos sites de literatura. Criei os designs dos personagens e o filme foi modelado e animado inteiramente em 3D pelo artista David Hoffmann (eheheh!). A trilha sonora está de arrasar.

Ah, sim... é de VAMPIRO.

Vejam imagens do filme no hotsite:

http://www.davi3d.com.br/lapide/

E se puderem, liguem o som.

Nós queremos bolar uma exibição pública pra convidar todos a assistir ao filme em boa definição, por isso optamos por não colocá-lo na internet ainda. Aceitamos sugestões, pessoal!

terça-feira, fevereiro 21, 2006

O Chifre Negro: Capítulo 3


A serventia da virtude.



Andou e andou por sobre pedriscos e lama, buscando sinais do próprio caminho. Os raios do sol já não passavam pela folhagem. O céu escurecia e ela não conhecia as estrelas, não sabia traçar seu percurso por elas como um cavaleiro ou navegante. Então, realmente sentiu medo. Sua boca estava seca e seu estômago se contorcia. Era uma Princesa, nascida entre bordados e criados, e nada sabia do Bosque Escuro.
De manhã, pensou, veria o sol e por ele saberia seguir para o leste. Mas era noite, e teria de salvar-se de tudo o que se movia nas sombras. Ouviu sons no fundo da mata e sentiu seu corpo gelar de frio e temor. Mas viu também uma luz e assim teve certeza de que eram homens. Sim: cavalheiros, decerto vassalos do Rei! Eles a conduziriam em segurança ao castelo. Por isso, sem muito pensar, ela correu para a luz.
Os homens se sobressaltaram ao ver surgir dentre as árvores a donzela resfolegante, o vestido sujo de barro e sangue, a grinalda de flores desmanchada nos cabelos eriçados. Olharam para ela com indecifrável interesse. Era um pequeno grupo, um senhor bem vestido e quatro empregados que recolhiam o pesado corpo de um javali morto havia pouco. A luz vinha do candeeiro que um deles carregava. Por fim o líder sorriu. Mas não era para ela que sorria.
– Vejam – disse para seus homens –, um presente do bosque para os caçadores.
E os servos riram, mas a donzela ofendida respondeu com firmeza:
– Sou a Princesa do Reino Daqui!
Então os homens gargalharam com mais gosto.
– Uma Princesa não anda sozinha na mata – disse o senhor – nem veste roupas imundas. – E dizendo isso deu um puxão na barra da sua saia já desfeita, que a fez gritar em protesto.
– Sou a Princesa e exijo que me levem ao castelo Daqui! O Rei os recompensará com muita generosidade.
– Se fosse mesmo a Princesa, saberia que o Rei está morto.
– É mentira! – gritou em lágrimas. – Ele vive! E ainda viverá quando...
– Não viverá muito tempo de qualquer jeito. – O homem se aproximou dela com um sorriso maldoso, e ela sem querer recuou. – Além do mais, não estamos no Reino Daqui. Você cruzou a fronteira há muito tempo, Princesa dos Mendigos. Estamos no glorioso Reino ao Lado. E aqui a lei do seu Rei é lixo. – Falando assim ele se virou para seus homens e, sem olhar para ela uma segunda vez, repetiu: – Uma pequena dádiva da mata para os caçadores. Façam bom uso dela.
– Sim, meu Príncipe – responderam os servos.
A donzela gritou, vociferou, xingou e suplicou, mas naquela noite, naquele lugar, suas palavras nada eram. Os homens tentaram silenciar seus protestos com golpes no rosto. Depois, desistiram disso ou passaram a achar graça nos seus gritos. Eles violaram sua honra e se divertiram com seu corpo repetidas vezes antes de ordenar que fosse embora se não quisesse morrer. Apenas o Príncipe Inimigo não quis tocá-la, pois não gostava de mulheres sujas, e enquanto os homens riam e a empurravam entre si ele também sorria, chamando-a Princesa dos Porcos. Foi uma noite muito longa.
Naquela manhã o sol tinha uma luz morta, enlutada num véu de nuvens, e o céu ficou cinzento. A Princesa abriu os olhos e não estava em sua cama. Não sonhara. Naquela noite, havia realmente perdido muito; coisas de pouca importância, como os sapatos de pelica, que mesmo assim faziam falta aos seus pés descalços sobre pedras e espinhos; e coisas caras. Muito caras.
Tocou os próprios lábios e sentiu o sangue que secara sobre eles; sua boca latejava. Então, levou a mão ao baixo ventre e ao toque dos próprios dedos ela sentiu dor outra vez. Uma dor que já não estava ali, no corpo, mas na alma, e que não passaria.
Podia ser Princesa, mas já não era donzela, e uma coisa de nada valia sem a outra. Nobre algum a desposaria agora.
Tinha a mente perdida em mil dilemas e dores; mal se deu conta dos sons que se aproximavam depressa. Homens na mata. Seu corpo todo se preparou para a fuga, para a proteção; mas acabou por reconhecer que as vozes pertenciam a soldados e que esses soldados chamavam... por ela.
Sim. Todo um dia se passara desde que deixara o castelo. Certamente o Conselheiro decidira mandar uma tropa em busca da que partira escoltando a Princesa. Naquele momento, já deveriam ter passado pelos guerreiros mortos e recolhido seus corpos. Mas ainda precisavam devolver ao Rei sua querida filha, mesmo que para isso devessem atravessar o Bosque Escuro até os limites do Reino ao Lado.
Quando percebeu as vozes perto demais, escondeu-se.
O Príncipe Inimigo dissera que seu pai enfim morrera. Se fosse verdade, então tudo estava perdido. O Rei morto, o Capitão de sua guarda assassinado, a Princesa desaparecida: o reino logo seria reclamado por algum duque vizinho ou invadido pelas tropas do Reino ao Lado. Se fosse mentira e seu pai ainda vivesse, de que adiantaria voltar ao castelo? Falhara em obter a cura para seu mal e estava desonrada. Traria vergonha ao Reino Daqui, viveria enclausurada, morreria sozinha.
Não voltaria; não podia. Que por todo o reino acreditassem que ela perecera, como os bravos que a acompanhavam, sob as patas da fera de um só chifre, buscando a cura para o Rei. Que seu nome fosse lembrado com honra e tristeza e não com vergonha.
Deixou que os homens passassem por perto sem responder aos seus chamados. Depois, afastou-se na direção contrária.
Mas que faria de si mesma? Que destino teria, perdida em terras inimigas? Buscar uma vila, quem sabe, e imiscuir-se entre os miseráveis, entre os doentes e arruinados, e finalizar assim sua desventura? Desgraçada, vender o corpo, havia pouco virginal, por um pedaço de pão? Não... oh, não.
Havia um deserto em sua garganta. O sabor amargo na boca também pedia água. Ela vagou lentamente, procurando onde matar sua sede. E foi à beira de um pequeno lago que encontrou mais do que esperava.

No próximo capítulo... No mal, a cura! E como se trata de um capítulo bem curto, em caráter especial ele entrará no ar não na próxima quarta, mas nesta sexta-feira. Estejam aqui.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Entrevista com Camila Fernandes - por Eric Novello

Amigos,

Eric Novello, autor dos livros "Noites Cariocas" e "Dante, o Guardião da Morte", mantém em seu site um conteúdo cultural diversificado e atraente. No meio disso, entrevistas. Ele acaba de publicar uma que fez comigo, na qual falamos sobre literatura, mercado, estilo, o que já passou e o que vem depois.

Quem quiser conferir, passe lá:

http://www.ericnovello.com.br/entrevistas_camilafern.php

Aproveito pra agradecer àqueles que viram a minha exposição de arte vampiresca no Garganta da Serpente (http://www.gargantadaserpente.com/najas/index.shtml). Cada um dos comentários me encheu de alegria. Muito obrigada a todos!

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Exposição vampiresca.

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Preciso falar mais alguma coisa?

Na dúvida, vamulá: o excelente sítio internético A Garganta da Serpente coloca no ar nesta quarta-feira, dia 15, a mostra "Morda-me", com ilustrações minhas. Óbvio que os vampiros são presença infalível aqui.

Visitem a mostra na Sala das Najas: http://www.gargantadaserpente.com/najas/

E não deixem de conhecer o restante do sítio: http://www.gargantadaserpente.com/. Desçam pela Garganta da Serpente e explorem cada um de seus covis: prosa, verso, inúmeros autores, artes gráficas, artigos e até cartões virtuais exclusivos para enviar aos colegas. E, claro: muito mais.

Passem por lá e sintam-se mordidos.

O Chifre Negro: Capítulo 2

A caça ao tesouro alheio.

Viu o sol subir e vazar em raios luminosos entre as copas das árvores e sentiu fome, e nada aconteceu que não o salto de uma lebre e o vôo dos pássaros, mas ela não quis partir. Seu pai, o Rei, esperava por ela no castelo: estava determinada. O Capitão, seu servo fiel, zelava por ela entre os arbustos: estava segura.
Viu também o sol ir desmaiando lento em sua cama no oeste, estendendo no céu um lençol púrpura. Mas ainda assim não se ergueu para partir. Foi quando ouviu o estalo, aquele que fez seu coração saltar. Ouviu outro estalo, e este fez de seu peito um tambor.
Os sons delicados da mata em movimento logo revelaram o ruído seco dos cascos. Vacilaram, desconfiados talvez, mas se avizinharam mesmo assim.
A grande cabeça surgiu do verde do bosque. Era negra, espantosa; erguia-se no topo de um pescoço longo e forte e patas poderosas cujos tornozelos arrastavam longas franjas negras sobre os cascos. O corpo se revelou alto, reluzente. A criatura deteve o passo, como se soubesse dos olhos que dissimulados a admiravam. E o chifre – feito de grossos anéis, reto, muito agudo e lustroso como uma adaga de obsidiana – rebateu um raio de sol e cegou todas as vistas.
A Princesa levou a mão aos olhos para protegê-los, mas era tarde. Fora tocada pela beleza do Unicórnio.
O grande animal negro aproximou-se, o som de seus passos fazendo eco no coração da donzela. Parou a uma distância decisiva, em que poderia tocá-la com o focinho de veludo ou trespassar seu corpo com a lança em sua testa. Bufou impaciente. Mas a Princesa não temeu, nem piscou. Sustentou o olhar nos olhos muito pretos da criatura: de tão pretos, quase rubros.
Sentiu a ponta do chifre roçar perigosa em seu rosto, e não tremeu. Então o animal baixou de vez o pescoço, arqueou uma perna, depois outra, e por fim repousou a pesada cabeça no colo da Princesa. Ela mergulhou os dedos delicados na sua crina selvagem. O nobre animal se rendera; era refém da beleza de uma donzela, e o tempo parara naquele colo branco, naquela cria negra, e tudo era silêncio.
Mas um novo estalo se fez ouvir, e outro, e outro, e logo uma dúzia de guerreiros armados se erguia, metal entre folhas, saltando para a clareira e cercando o idílico par.
O Unicórnio retesou-se, fera acuada, quando um laço voou para seu pescoço. Seguiu-se outro, e então mais outro, e o animal teve sua cabeça presa por grossas cordas. A Princesa gritou, subitamente desperta, subitamente arrependida do crime que antes desejara ardentemente cometer. O Unicórnio devia morrer para que seu pai vivesse. Mas ela gritava, oh, não, oh, não, e os soldados, fiéis à missão, eram surdos à sua súplica.
O animal aquietou-se, resfolegando do esforço pela liberdade, e julgaram-no derrotado. Um ou dois suspiros de alívio e assobios de vitória se ergueram na clareira. Mas o olhar do corcel se cruzou com o da Princesa, e ela chorava, e as lágrimas em seus olhos eram tão genuínas quanto o ódio nos dele.
De repente, o Unicórnio empinou-se, então, corcoveou e suas patas traseiras atingiram o peito de um soldado, atirando-o de uma vez no chão. O animal o pisoteou, um ato calculado que esmagou o pescoço do homem, e uma chuva de coices seguiu-se. A fera bufava, relinchava furiosa, arremetia contra os soldados. Derrubou dois, pisando com força por cima de seus escudos, escoiceando e se contorcendo. Um arqueiro lhe acertou uma flecha no flanco direito, e o animal correu para ele e o golpeou com as patas dianteiras. O sangue escorreu farto da ferida, mas seu ódio era maior do que sua dor. Outro guerreiro investiu contra ele empunhando uma espada; o ágil garanhão escapou do golpe curvando-se e usando o próprio corpanzil para esmagar o inimigo contra uma árvore. Um a um, os soldados da Guarda Real sofreram a fúria do animal traído. Mas ele reservou sua arma mais letal para o último, o líder, o Capitão.
O Unicórnio raspou o chão com a pata esquerda, o pescoço arqueado, os olhos fixos no combatente. O Capitão, ciente da nobreza do corcel, curvou-se em reverência, mas manteve a espada em punho, reconhecendo a luta iminente. Então, homem e besta correram de encontro um ao outro, e a lâmina colidiu contra o chifre negro. O animal ganhou distância e investiu mais uma vez, só mais uma, contra o guerreiro. Mas seu chifre não procurou a espada. Encontrou o peito do Capitão e, rompendo metal, carne e osso, perfurou seu coração. Uma morte digna para um digno adversário.
O corpo do homem tombou quando o Unicórnio retirou depressa, ato único, seu chifre do peito rompido. Bufou e ofegou, e seu olhar percorreu a clareira. O sangue banhava seu peito, sangue dele e de outros. Os inimigos jaziam no chão. Restava um, porém, e este soluçava agarrado a uma árvore, os grandes olhos azuis comprimidos no rosto, as mãos crispadas junto ao peito. A Princesa chorava.
Atreveu-se a olhar nos olhos da negra besta, e não desviou os seus. Devia morrer agora. Que o fizesse então de cabeça erguida.
Mas o animal não se aproximou, não corcoveou, nem a alcançou com a lança que tinha por chifre, agora vermelha do sangue de um herói. Ele a encarou por um longo instante de mágoa; então, deu-lhe as costas. Galopou para longe.
A donzela viu confusa o corcel se afastar. Depois, levantou-se e olhou ao seu redor: o horror da matança e dos corpos espalhados finalmente a tornara insensível. Já não conseguia chorar ou gritar. Tentou andar, e suas pernas demoraram para cumprir sua vontade. Os passos miúdos se afastaram devagar daquele local de morte. Devia voltar para o castelo e conformar-se; prantearia o pai e vestiria preto, então vestiria branco outra vez e enviaria emissários ao Príncipe Inimigo, solicitando-o como aliado e marido. Assim devia ser.
Olhou ao seu redor, porém, e não reconheceu a mata. Correu para um lado, depois para outro; a trilha aberta pelos soldados fora como que engolida pelas árvores. Então, com um gemido, admitiu que estava perdida.

Na semana que vem, descubra... A serventia da virtude.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Eu quero entrar em você

inexplicável

Eu quero entrar em você. Não importa a via, física ou incorpórea. Mas é imprescindível que eu entre. Não importa o custo. Eu preciso estar em você profundamente, uterina, latente, subreptiliana, umbilical.

Amor? Ah, não. Não pense que é amor. Talvez um subgênero da paixão, aquela que nos inspira e consome, afinal, estou aqui e escrevo a você pedaços de mim esperando que possa absorvê-los numa osmose intelectual. Só pode ser paixão. Mas também não me tome por uma apaixonada no sentido clássico: aquela que irá render-lhe homenagem, trazer presentes, jogar o casaco por cima da poça de lama e vê-la passar com frieza por sobre o seu orgulho. Ah, não. Não há nada de nobre ou generoso na minha paixão. Ela é essencialmente destrutiva. Uma paixão matadora. O único tipo que vale a pena.

Eu preciso destruí-la para compreendê-la. Que piada! Devore-me, só assim poderei decifrá-la. E talvez nem assim chegue a tanto. Devo destruí-la porque a idolatro. Porque simplesmente não a suporto. Porque você tem a genética ao seu lado e a fortuita combinação dos gametas dos seus pais construiu em você a beleza perfeita, sem pretensão nem disfarce, inconsciente de si própria. Porque a seqüência de eventos infelizes na sua curta vida a dotou de uma bagagem psicológica que faria inveja a qualquer personagem fictício. E você é real. Mal consigo crer, mas é. Sua complexidade me entorpece.Qualquer um adoraria contar uma história sobre você. Eu mesma contei várias. Devo contar esta última.

É por isso que quero entrar em você. Aí dentro deve ser o lugar mais louco do mundo. Preciso fazer parte de você como ninguém mais. Como ninguém quis, soube ou se atreveu. Preciso alcançá-la. Que seja por meio de um beijo roubado, um tapa na cara ou um segredo seu que eu conheça por não ser óbvio – algo absurdo o bastante para abalar o seu ritmo cardíaco. Sim. Um choque contra o seu pedestal. Um abalo sísmico na terra onde você é rainha. Algo que eu tenha e de que você precise. Ou algo que eu tenha e lhe empurre goela abaixo e você não saiba regurgitar. De um jeito que viole tudo o que você é – ah, sim: é fundamental que você se sinta violada. De que outra forma eu poderia legitimar minha invasão?

Quero habitar o que você é, chamá-la de meu mundo e governá-la. Sim, governá-la; para tudo o que é selvagem há um adestrador. Eu quero domá-la. Ser fálica com você. Dizer que não vai doer, mas forçar o caminho entre suas pernas e lamber seu choro. Deixar marcas dos meus dedos nas suas nádegas e uma vermelhidão de roçar no seu rosto. Não soluce, ou eu vou gozar antes da hora. E quando o gozo vier eu serei você. Terei espirrado o pior de mim no melhor de você. Terei arruinado sua beleza, feito da sua pureza uma simples pretensão, um sonho enojante e suburbano; terei definido a fogo minha presença em seus pesadelos, em seus desejos mais simples, em tudo o que sair da sua boca e das suas artes, nos seus versos e olás, na sua prosa e nos seus adeuses. Terei enxertado o que sou em você, um caule partido. O seu broto eu levarei comigo.

Assim eu serei um pouco do que você é, e você um pouco de mim, irremediável ironia, goste ou não. Mas goste um tantinho, sempre. Sei que vai. E nunca mais olharei para você. Será parecida demais comigo.

O Chifre Negro - Capítulo 1

Caros visitantes,

Quem no ano passado curtiu os episódios de Caia na Noite e Mia - Uma Autobiografia Felina ficará feliz com o retorno das mini-séries a O Demo Sentado em Meu Ombro. Isso mesmo! Temos uma nova noveleta - nova noveleta, será cacófato ou só um eco pobre? - para agitar essas quartas-feiras do cão. Digo, do Demo!

O Chifre Negro, série em 5 capítulos, é minha primeira incursão no território das lendas mágicas. Trata-se de um conto de fadas adulto - designação falha, já que não há fadas nele. Adulto: deixem fora do alcance de crianças. Nessa história, seguiremos os passos ora sutis, ora perigosos, de uma princesa em missão especial: salvar a vida do pai, um rei outrora grandioso. Para isso, ela conta com tudo a que uma princesa tem direito: beleza, servos leais, coragem, virtude e... uma obstinação que desconhece os limites da crueldade. Mas será suficiente?

Nas entrelinhas do conto há uma simbologia proposital que espero que vocês apreciem. Por favor, não deixem de enviar suas impressões e críticas. O Demo Sentado está trabalhando para melhor atendê-los, eheh.

Agora, acompanhem a donzela nessa aventura metade sonho, metade pesadelo.

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Capítulo 1: Se as belas são feras.

O Rei ancião ressonava pesado. O homem de pé, nem tão mais moço, tomou-lhe de novo a pulsação. Pousou a palma leve da mão no peito que subia e descia.
– Seu coração está exausto – falou num sussurro. – Trabalhou duro por muitos anos e quer descansar de vez.
Ao seu lado, olhos se arregalaram em desesperança. Eram azuis, talvez demais, e pertenciam à moça que, sentada à cabeceira do doente, afofava seu travesseiro. Filha, Princesa, cabelos dourados e pele muito clara corada por manhãs de sol bom. Menina bela a meio caminho de bela mulher.
– Então ele vai morrer – ela disse sem conformar-se. – Nada mais pode ser feito?
O homem de barba, sem bigodes, franziu o cenho triste.
– Sua alteza faria melhor em procurar o consolo na felicidade de um bom casamento. Seria bom apressar-se, para que o reino não fique sem um rei.
– E como é que a morte de um pai pode permitir a felicidade da filha, ainda que com o melhor dos noivos? – A Princesa se levantou, fugindo da idéia. – Além disso... os pretendentes não me agradam – confessou em meia-voz.
– Mas pode realizar o sonho de seu Rei, fazendo a paz com o Reino ao Lado. Despose o Príncipe Inimigo e terminará com a guerra que fez de seu pai um velho tão cedo.
A menina já não ouvia. Tinha os pensamentos além da janela aberta, por onde encarava o horizonte.
– Não – disse. – O dia é bonito demais para um funeral. – Lá... em algum lugar, algo que não temos ou não sabemos. Algo deve curar meu pai. Médico, filósofo, Conselheiro – o senhor sempre serviu bem a meu pai. Seja também meu Conselheiro, mas não me fale em núpcias. Diga-me como salvar o Rei, pois não desejo outra coisa.
O sábio pigarreou, vacilou; tinha as mãos às costas, pensando se escondia ou revelava o que ia em sua cabeça. Aproximou-se também da janela.
– Há uma coisa – disse –, ou talvez não haja. Não sei ao certo. Mas se eu pudesse perguntar aos antigos eles diriam que há.
– O que é?
– O chifre de um unicórnio. O cálice feito do chifre de um unicórnio tornará o vinho em seu interior no remédio absoluto, curador de qualquer mal. Contudo – resmungou sem ânimo –, em todos os meus anos de estudos eu jamais vi um, nem conheço quem possua semelhante artefato.
– Pois então conheça. Consiga-me um chifre de unicórnio.
O homem suspirou longamente.
– Um velho não pode obter isso. Um soldado, tampouco, nem um exército, nem um decreto real. – E agora o homem ria um riso discreto, meio tosse, meio amargo, mas parou e olhou a Princesa nos olhos cujo azul desafiava o do céu. – Os unicórnios são criaturas raras, belas como corcéis divinos, mas ferozes como bestas do inferno. Não, não; os homens podem guerrear para arrancar seu poder e beber no seu chifre, mas um desses animais magníficos, se importunado, pode pôr fim a uma legião. Assim diziam os antigos, antes de eu nascer, no tempo em que meu próprio mestre era menino. Apenas um outro ser, seu rival em beleza, dignidade e pureza, seria capaz de domá-lo.
– E que criatura seria essa?
– Uma donzela – sorriu o Conselheiro.
A Princesa voltou-se em desafio. Por um instante o velho imaginou-a ofendida. Mas ela o encarou na seriedade de um túmulo.
– Serei essa donzela – falou. – Diga o que preciso fazer para ter o poder do chifre do unicórnio. Diga-me aonde devo ir, o que devo dizer, cantar ou sacrificar.
O sábio tinha uma tristeza aflita no rosto muito franzido quando a tocou por instinto nos ombros.
– Não – disse com firmeza. – Sua alteza é a única herdeira do trono. Se o Rei morrer eu devo zelar por sua segurança. Acredite: essa criatura que se parece com um sonho é na verdade um pesadelo vivo. Se ela olhar em seus olhos e não a considerar digna, irá destruí-la sem pena. Não deve correr perigo. Eu lhe peço: deixe que outra pessoa vá em seu lugar. Há centenas de donzelas no Reino Daqui que certamente se arriscariam felizes pela vida de seu soberano...
– Não! – respondeu a menina. – Eu sou a filha do Rei. Quem morreria por ele com mais alegria? Que amor pode ser mais forte do que o meu? E quem poderia – acrescentou com um sorriso ligeiro de triunfo – ser mais digna do que uma Princesa?
O Conselheiro a fitou demoradamente. Por fim, pôs os olhos no chão.
– Com ou sem o Rei, em breve eu serei sua rainha – disse ela num tom controlado. – Por isso, faça de meu pedido uma ordem. Diga-me onde encontrar o unicórnio e como devo me preparar para arrancar o chifre de sua cabeça.
Assim, no dia seguinte, muito cedo, a Princesa partiu para a floresta acompanhada de metade da guarda real, comitiva estranha e agressiva para uma manhã tão suave. Liderava o grupo armado um Capitão herói, homem de muitas batalhas e poucas palavras. Ia triste: amava o Rei e pensava que a Princesa, na iminência de perder o pai, enlouquecera. Procurar unicórnios! Mas ela ia de queixo erguido, montada na égua mansa cor de canela, o longo vestido de linho branco acenando na brisa, a cabeleira de ouro rivalizando com o sol. Uma noiva predestinada, pensariam os viajantes que a vissem. Mas a comitiva não tomou a Estrada Real. Seguiram em fila pela trilha que levava ao Bosque Escuro, primeiro larga, percorrida na boa estação por nobres caçadores com seus cães e arcos e criados, depois estreita e hostil, fazendo as espadas saírem das bainhas para abrirem caminho com força.
O Conselheiro devia ficar, velar o Rei em agonia, e daquela janela observou o cortejo ser engolido, soldado após soldado, pela folhagem do Bosque. Suspirou uma prece aos espíritos das árvores para que dessem bom termo à missão da Princesa.
– Se preciso, arrancarei o chifre da besta com minhas próprias mãos – jurara, cruel, a donzela – e farei com sua pele um casaco de inverno.
A Princesa tinha flores silvestres em feição de coroa em torno da cabeça. As pétalas frescas perfumavam seus cabelos. O orvalho da noite ainda brilhante nas folhas do bosque colocou diamantes de água em suas bochechas e cílios. Os soldados suspiraram felizes por escoltar um anjo.
A mata era densa, mas a comitiva chegou por fim a uma clareira, e a Princesa ergueu a mão: bom lugar para apear. Os guerreiros sabiam o que fazer. Ocultaram-se como animais de caça no Bosque Escuro, não muito longe, não muito perto, e a Princesa sentou-se entre as raízes de uma árvore frondosa, suas pernas muito juntas, joelhos arqueados, as saias brancas espalhadas sobre as folhas secas, tapete que estalava.
E esperou.


Na próxima quarta-feira, Capítulo 2: Caça ao tesouro alheio!


 

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