sábado, agosto 20, 2005

Hábitos Modernos

figurinha nova e poema senil

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Um dia, se aprende

A beijar sem amar,

Amar sem dizer,

Chorar sem soluços;

Futuro é um sujeito

Na beira da estrada,

Fedendo a cachaça,

Deitado de bruços.

Devo habituar-me

À pressa no prazer,

Ao fim de uma promessa,

Ao dedo na ferida.

Isso é contrabando

De corpos e almas,

Desespero, tédio

Ou estilo de vida?

07.1998-08.07.2000

Acabrunhada

poema caduco

Levo comigo um miúdo pedaço,
Que resta de um íntimo sonho;
Velha me vêem, se jovem me ponho;
Jovem me querem, se velha me faço.

Vejo-me: o espelho de um estilhaço
De vidro lançado no palco enfadonho,
E fico secreta neste olhar tão baço,
Que fita dolente, e crêem-no risonho...

Minha emoção é tão somente um vulto
Que corre alarmado, ora aqui, ora ali;
Um léxico falho que sempre consulto
Buscando salvar-me de tudo o que vi:

Distante da estupidez deste culto,
E, acabrunhado, devorando a si,
Mudo desejo, usualmente oculto
Num canto de mim e à beira de ti...

20.04.1998 (OK. Eu disse que era velho. Notem isso pelo formato...)

quarta-feira, agosto 17, 2005

Rabisqueira 02

Mais um fruto do meu mais recente vício:

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Pode ser uma vampira. Ou não.

No seguinte endereço dá pra ver um passo-a-passo do desenho, da estruturação meia-boca à pintura:

http://artpad.art.com/gallery/?ildjruo53cg

Desenhar com mouse é um saco. Mas neste momento eu sou preguiçosa demais pra pegar a mesa digitalizadora.

Rabisqueira 01

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Pra ver a figura sendo criada no programa ArtPad, visitem http://artpad.art.com/?ildgr0raubw

E aproveitem pra desenhar por lá também. Pode render algumas horas de diversão!

segunda-feira, agosto 15, 2005

O monstro em mim.

Há um monstro dentro de mim.

Ele aparece principalmente quando você está por perto.

Observa pelos meus olhos os seus gestos, me retorce as entranhas num nó de fúria e sussurra, de mim para mim, as lições que eu deveria lhe dar.

Esse monstro me mata, amor. E mata devagar. E ele já se mostrou a você.

Na primeira vez, éramos somente nós, e eu me abri, revelei meu caráter mais íntimo, e lhe mostrei o que existe dentro de mim. Você não disse nada. Mudou o assunto, comprar cerveja, alugar um filme – mas vi nos seus olhos aquele desassossego de quem tenta enganar o medo.

Na segunda vez, tivemos platéia. O erro, o grito, os queixos esmurrados, o escândalo. Lembro-me quase sorrindo dos olhares chocados no bar. Lembro-me quase chorando das suas ameaças, mas não me deixe, não, amor, eu serei bom...

Foi só do muito que eu a quero que consegui fazê-la ficar. Recolhi o demônio ao meu calabouço mais profundo, barrei-o, soquei-o em mim, embalsamado. Então, cumulei-a de flores, perfumes, momentos de calmaria e gentileza, e olhe, amor é a nossa música tocando no rádio. Dancemos.

Chorar, nunca. A besta permite nunca o lamento e sempre o ódio.

Mas o monstro cochila e pisca os olhos sonolentos, muito vivos, para mim. Ele me diz que eu devo ser severo. Para puni-la por tudo o que ainda não fez. Para não deixar que você me engane. Você me engana, amor? Com os abraços e os beijinhos e os amigos que na sua boca são apenas amigos e talvez na sua esperança sejam mais? Você me diz que não há malícia, não há maldade neste mundo a não ser em mim, mas ilude-se e me ilude consigo: há interesse nos gestos casuais desses sujeitos que a cercam.

Você é belíssima. Bela demais para ser de um homem só. Bela demais para que o homem que a tem suporte dividi-la com outros.

A besta que reside em mim vigia seu domínio, querida. Você e eu? Suas vítimas. Seu nome? O ciúme.

Esse monstro me mata, amor. E, um dia, matará a nós dois.

quarta-feira, agosto 10, 2005

Mia: Capítulo 5 - Final

Todos os de nossa fraternidade felina, por domesticados e dóceis que sejam, seguem um princípio que nos deu a fama de bons caçadores, além de incuráveis ladrões. Ele diz: se quer uma coisa, vá pegá-la agora mesmo.

E eu queria voltar para casa. Digo, para a casa de Emma e do imbecil. Já que nunca seríamos amigos, não seria possível voltarmos a ser apenas adversários silenciosos? Humanos não costumam ser tão rancorosos. Não comigo. Talvez ele houvesse pedido perdão a Emma e pudesse ao menos tolerar-me por ela. Poderia até estar com sua consciência extremamente pesada por haver-nos tratado daquela forma e meu retorno poderia significar seu alívio – embora eu não confiasse em nenhuma destas hipóteses. Mas eu também queria ver como ela ia passando. Devia estar sentindo minha falta. Poderia até estar pensando que me perdera para sempre, a pobre.

Então, reuni toda a minha coragem e desfaçatez a caminho do apartamento.

Alcancei a escada de incêndio. Tudo era silêncio.

Não tive de arranhar o vidro para que me fosse permitido entrar. A janela estava suficientemente aberta para que eu me esgueirasse por ela, saltando para o chão da sala. Seria possível que tivessem saído e deixado a janela aberta? Não é isto o que chamam de imprudência? Quiçá estivessem no quarto, dormindo cedo demais. Fui averiguar.

Não gostei do que vi.

No quarto, somente Jo. Estava atirado sobre a cama, de braços abertos. A indispensável garrafa estava ali ao seu lado. Não havia outro som que não o de uma respiração muito fraca e sôfrega, até doentia. Estava vivo, é claro, mas não muito, penso eu. Alguns homens ficam semimortos quando bebem e penam demais. É como estar doente o bastante para ver a morte chegando, mesmo que ela esteja muito longe.

O guarda-roupas estava com as portas escancaradas e as gavetas abertas. Havia algumas peças no chão, mas só o que sobrara ali dentro eram as roupas de Jo. As de sua mulher – bem como as de seu filhote – já não eram vistas. Eu só aspirava odores de álcool, suor, poeira, fezes sob os sapatos, rua, fumaça, desamparo, solidão. Emma fora embora.

As situações em que somos pegos são pouco mais do que o reflexo de nossas atitudes. Que força pode obrigar a prostrar-se um ser livre, senão a do seu próprio arbítrio? É o mesmo poder que o leva a reagir.

Vermes e abutres tendem a alimentar-se do que está morto. A conduta de uma única pessoa forja inúmeros papéis a serem cumpridos pelos que estão à sua volta, e a oportunidade é um petisco fácil ao qual poucos resistem. A vontade de Emma estava morta. Jo tornara-se o seu verme. Da passividade, da tolerância e da sujeição, porém, ela se erguera, protegendo a si e ao seu filho. Decidira-se pela mudança, tarde, mas não tarde demais. E nada, nem minha recordação, poderia tê-la mantido na inércia.

Decerto que esperara por mim... Decerto que me julgara perdida. Devo ter me ausentado por muito tempo, não sei quanto. Não a culpo. Não posso. Ela salvou o que lhe restava.

Mas bem que poderia ter-me esperado um pouco mais.

Hoje, subi ao telhado para observar as estrelas. Gatos viris, apaixonados por nada, entoavam seus cantos ao longe. Os cães enlouqueciam com o barulho e os mais tristonhos e velhos uivavam. Fechei meus olhos e apreciei aquela sinfonia dissonante. Logo eu já não estava sozinha no meu camarote.

– Ora, veio disputar território?

Era o Velho alvacento que vinha me saudar. Agachou-se também junto à calha do prédio, pouco distante de mim. Recebi-o em paz.

– O meu... tem estado um pouco vazio.

– Percebi.

Calamo-nos por um instante.

– Às vezes, partem antes de nós. Mas fui afortunada.

E não dissemos mais nada.

Tenho visto o Velho pelos telhados, mas não conto dividí-los com ele por muito tempo. Este gato é uma antigüidade. Se fosse um objeto, os homens o louvariam em vez de desprezá-lo. Logo ele partirá de modo que jamais possa ser encontrado, se não for antes pego por um carro ou uma turma de delinqüentes sedentos de violência.

Eu? Ora. Essas coisas podem acontecer a mim também. Estou de volta às ruas. Não creio que demorarei a esquecer-me do rosto de Emma, de seu nome, de seu perfume. Creio menos ainda que encontre novamente criança ou família que queira acolher-me em seu regaço, mas quem sabe ao certo? Não tenho compromissos e nem lugar onde depositar meu cadáver. Já sou velha. Faltam-me dentes. Dirá alguém que as beldades são eternas? Não eu. Mas não me queixo. Fui agraciada com tudo o que alguém como eu poderia pedir, exceto o sono final num leito macio. À frente de uma lareira, à sombra de uma árvore, nos córregos das sarjetas, em braços amáveis – que me importa onde encontre a morte? Se encontrei a vida nos melhores lugares que poderia imaginar!

Não estou arrependida ou injustiçada. Não se diz que os gatos possuem muitas vidas? Eu vivi por todas elas.

Minha existência de fidalga foi longa, invejável e magnífica. Imite-me quem puder.


Janeiro de 1999.

Revisão em março de 2003.

terça-feira, agosto 09, 2005

Desculpas esfarrapadas

Eu tinha uma amiga que...

Mentira, amiga nada, quem fazia isso era eu mesma. Contar a própria história no nome de outra? Tenha santa paciência.

Eu tinha uma amiga, que no caso sou eu, que pedia desculpas demais. Esbarrava nos colegas familiares, pessoas com quem se estar à vontade, e se desculpava. Errava o nome da pessoa, desculpava-se até ficar vermelha. Mandava cartas de desculpas. Mil perdões jurados e sacramentados. Desculpe por te aborrecer, eu não queria. Desculpe por ter chegado tão atrasada. Desculpe por não ter te dado o presente perfeito. Desculpe eu já estar de saída. Desculpe por estar ocupada. Desculpe não ser tão esperta. Desculpe ser. Simplesmente... desculpe.

Quem pede desculpas demais é porque dá mancada demais.


Já começou pela pior das mancadas: se arrepender de tudo.

A culpa é um doce tormento, o remédio dos auto-indulgentes. Ela nos desculpa pela imperfeição. Pedimos desculpas demais para enganar a perfeição. Quero dizer: desculpe, mas eu não vou tentar ser melhor do que isso. Apenas me desculpe. Continue desculpando. É bem simples.

Desculpa esfarrapada... merda.

Desculpe-me por existir.

quinta-feira, agosto 04, 2005

O dia em que fui mosca.

Hoje de manhã no banheiro. Azulejo amarelo estampado, casa de velho, flores setentistas me cercam, eu na privada, eu privada, particular, muito minha e livro na mão, e as moscas na parede.

As moscas trepam.

Uma trepada estática, congelada no tempo. Coladas de rabo em rabo, não tentam andar como os cachorros que trepam na rua nem se alavancam uma na outra como os cachorros que trepam na cama. Só... estática. E a vida delas é trepar na inércia.

E eu: e se ficarmos assim?

E se nossa vida der nisso? Dois putos imóveis no nada, vidinhas de poucos segundos, prisão de felicidade enganosa. De costas um pro outro, colados, olhando pro nada, sem abraço, sem alavanca moral, sem brio, moscas. Com asas de efeito psicológico, que não servem pra escapar de uma mão espalmada na parede.

Minha mão espalmada. Sexo esmagado bem na linha da vida.

Eu não sei por que estão aqui. Eu estou aqui. Meu banheiro. Que é que há? Gostam de fedor? Ele me disse que é por causa da umidade. Ingênuo. Pra mim elas gostam é de bunda. Essas mosquinhas de umidade. O planeta delas gira em torno do ralo.

Ele me disse pra não pôr a mão no ralo que é sujo, mas eu fui pro ralo pra ver o que é que o ralo tem. Tampa fora. Mão no buraco. Maçaroca de cabelos de todas as cores, cabelos de morenas e cabelos de carecas, presentes de gente querida. Há quanto tempo não limpam esse ralo? Cabelos de gente anterior a mim saem junto. Cabelos em profusão. Bigodes de gato. Cílios de velha. Pentelhos de amigo. Cera de ouvido. A nunca acabar.

E as moscas se juntam ao meu redor, frágeis como a lucidez. Fáceis de eliminar. Como a lucidez. Só um tapa. Vários tapas. Pelas paredes as mãos espalmadas. Cabelos e o lodo do mundo pendendo das mãos. Reunião de moscas. Platéia efêmera. Eu espetáculo do ridículo. Eu só mãos e lodo.

- Vocês querem umidade, seus porras?

Tampa de volta no ralo. Isso, feche os buraquinhos com o pé imundo. Unhas de dinossauro sem cortar há mais de mês. Feche o box também. Ligue o chuveiro. Tomar banho o dia inteiro. Limpar a mente. Anotação mental: não fazer mais anotações mentais. O celular tem agenda, porra, use a cabeça. Abra a cabeça. É quase, quando escorrego e bato a testa na torneira. Mil xingamentos. O celular toca lá fora. É ele? Ele diz que não vem? Não vou atender. Estou sangrando na testa. É certeza que as moscas acham graça. Se eu fosse como elas eu também acharia.

Se eu fosse como elas.

Se eu fosse como elas minha vida seria trepar na parede. Passar a existência na estática. Parar o tempo no ponto do gozo e não pegar o próximo trem. Improdutividade. Sim. Criogênica e feliz.

Mas ele telefona pra dizer que não vem! Por que telefonaria se viesse? E se ele não vem a casa desmorona. As moscas trepam, rabos nos rabos, nem antenas mexem. Só uma não tem par. Sou eu.

O telefone pára. Eu mosca solitária achatada na parede.

A água desce. O dia passa. Eu mosca.

- Amor? Amor... o que é que você... caramba, olha sua testa. Me deixa ver isso. Vamos lavar.

Ele me puxou pelos braços.

- Por que o banheiro tá cheio d’água? Por que é que você não atendeu ao telefone? Eu liguei pra dizer que ia me atrasar uma meia horinha. Desculpa. Você tá bem?

Zum zum zum zum.

- Amor? Fala alguma coisa!

- Zum zum zum zum!

- Palhaça...

A casa ainda está de pé. Ele veio. Ele me abraça. Graças à deusa. Bem-vinda, lucidez.

segunda-feira, agosto 01, 2005

Mia: Capítulo 4

Os humanos têm um estranho apego a coisas inúteis. Certos objetos despertam neles maior interesse do que os próprios seres vivos. Têm enorme cuidado com determinadas miudezas, como conjuntos de chá de louça de não-sei-onde, com aquelas xícaras que mal conseguem segurar, de tão pequenas. Só servem como ornato para os seus móveis – outro estrambótico costume humano é colocar muitas coisas pequenas sobre coisas grandes com o único propósito de dificultar nossa vida quando queremos caminhar por sobre as mesas, armários e prateleiras. E infeliz do descuidado que se arrisca a bulir com essas preciosidades. É por isto que parei de subir na penteadeira de Emma. Estava sempre cheia de frascos de perfume, e eu costumava tropeçar neles.

Se os humanos gostam tanto de embelezar suas casas, deviam ter mais gatos. Francamente, servimos para menos coisas do que um bom cão: não apanhamos jornais, chinelos ou brinquedos que se nos atirem, não guardamos o lar contra ladrões e, acima de tudo, não acatamos ordens. Mas o gato é um adorno! Uma preciosidade viva que escolhe cuidadosamente o ponto da casa que irá enfeitar.

Eu falava sobre xícaras de chá, não? E sobre os infelizes que querem examiná-las. Pois bem. Desde que me mudara para aquela nova casa, havia uma grande estante na sala. Pareceu-me impossível usá-la como passarela, pois era repleta de quinquilharias brilhantes – entre elas uma enorme bandeja de louça com seu bule, seu açucareiro e suas xícaras, sobre uma toalha rendada. Emma limpava-as com um zelo nunca visto. A mãe de Jo lhas havia dado; tinha de tratá-las com delicadeza, como se fossem bebês. Eram antigas, valiosas, cheias de recordações. Molestá-las era molestar Jo e toda a sua família. E eis que, naquela noite, lá estava o Pequeno, vasculhando com seus débeis dedos as minúsculas peças de ornato. Eu o observava do sofá, de certo modo feliz porque ele se livrara de sua apatia e tentava descobrir o mundo. Pegou um cinzeiro de pedra, olhou-o, circunspecto, e deixou-o cair. Mas o objeto pousou sobre o tapete e, sendo muito duro, não se quebrou. O Pequeno partiu para as outras curiosidades. Esticou seus braços para o alto, em busca das xícaras, mas era muito franzino e baixo. Então, ficando trêmulo nas pontas dos pés, alcançou a beirada da toalha e puxou-a para a frente.

Os homens não primam pela firmeza e a precisão; suas crianças, ainda menos. Toda a louça veio abaixo, permitindo a ele apenas afastar-se para o lado. Desta vez, apesar do murmúrio da chuva que caía lá fora, Emma ouviu o estardalhaço. Correu para a sala.

– Ah, Deus! O que você fez? Machucou-se?

Fê-lo levantar-se e olhou para a louça. Ruínas.

– Mas está tudo quebrado aqui... O que você fez? Seu pai não vai gostar disso. Não mesmo! Ah, não, não chore!

Já falei sobre o senso de conveniência humana. O de Jo era dos melhores. Decidiu abrir a porta da casa naquele instante propício e surgir na sala, com uma garrafa na mão. Sua cara estava molhada. Creio que se perdera da sua condição de homem e pai, pois não me pareceu mais inteligente do que um galo de briga.

O filhote chorava um choro agudo. Ela ficou parada, cacos de louça em suas mãos.

– Aconteceu por acidente – explicou. – Nós não...

– Foi ele ou foi você? Por causa do que eu disse ontem sobre a sua família? Você quis ofender a minha?

– Não é nada disso, nós estávamos aqui e...

– Então foi ele. Já não lhe disse para vigiá-lo? Você é complacente demais! Como é que deixa esse menino sozinho, Emma, você sabe muito bem que... ah... Por que simplesmente não põe dinheiro nas mãos dele, para vermos se ele o rasga e destrói todo, também? Da próxima vez ele pode querer brincar com facas!

Ela protestou, mas então Jo já agarrara o Pequeno pelos ombros e sacudia-o.

– Por que é você que não tem força? Firmeza? O que é preciso fazer para que seja um homem?

Emma segurou-o, tentando ganhar seu interesse.

– Pare com isso!

– Sou o pai dele! Você o trata como se ele fosse uma menininha. Por isso é que ele ficou delicado demais. Se você não pode lhe ensinar, eu mesmo o faço!

Ele a empurrou e saiu puxando o Pequeno pela blusa. Mas a criança não tinha forças para acompanhar as passadas gigantescas que o maldito dava. Logo estava sendo arrastada pelo corredor.

Saltei da poltrona e segui os dois com os olhos. Não me aproximaria de um homem naquele estado. Seu cheiro era tão forte que me causava quase tanta repugnância quanto sua própria figura.

Jo não parou senão quando chegou ao quarto do filho. Abriu a porta e enfiou-o lá dentro, trancando-o por fora.

– Já devia estar na cama. Ficará aí dentro agora, para ver se não quebra mais nada!

Retornou à sala, onde Emma se colocou à sua frente.

– Pelo amor de Deus, o que você fez com ele?!

– Fique quieta, droga. Ele é meu filho! Acha que eu o machucaria?

– E eu sou sua esposa! O que é que tem feito comigo além de me machucar?

– Eu machuco você? É isso? Quando eu a machuco?

– O tempo todo... seu bêbado!

Ela estava desfeita em pranto. Ocultei-me nas sombras do corredor. Conseguia ouvir o Pequeno dentro do quarto, sacudindo débil e inutilmente a maçaneta da porta. Na sala, a voz de Emma parecia o miado de um filhote faminto. Por que só chorava? Se o menino fosse meu filhote, eu arrancaria a pele do rosto daquele homem.

– Só o que faz é me machucar... me ofender... Não tem um único gesto de amor ou sequer de respeito para mim! Você não é o homem com quem me casei! Não é um bom pai e nem um bom marido. É um louco, um monstro!

Não poderia impedir minhas patas de dispararem a correr para longe quando eles começaram a vociferar juntos e ele a atingiu no rosto com a violência de um inimigo declarado. Foi um único tapa, mas bastou. Acho que o que caiu ali não foi o corpo de Emma, mas todo e qualquer orgulho que ela possa ter tido um dia, pois não ouvi mais nada na sala além dos passos pesados de Jo no corredor, indo para seu quarto – o esconderijo que eu infelizmente escolhera – e o choro agudo de Emma, sentada no chão.

Ele adentrou o recinto. Não me contive. De cima de sua própria cama, rosnei para ele, cuspi-lhe, ofereci-lhe todo o meu desprezo. Eu o afrontava. Sua mão avançou, disposta a aplicar também a mim uma lição inesquecível. Pulei de lado e minhas garras se eriçaram tanto quanto puderam, desferindo-lhe um golpe pelo qual mereço congratulações.

– Coisa desgraçada!

Mais astuto do que eu previra, ele me agarrou pelas costas com a mesma mão que sangrava, esticando-me a pele de modo que fiquei anulada e inteiramente indefesa, enquanto ele me carregava para a sala.

O quarto também possuía uma janela. Mas penso que ele não resistiu à idéia de que sua maltratada companheira presenciasse o crime. Era pela janela da sala que ia me atirar, quando Emma, ainda em prantos, finalmente correu em meu socorro, barrando sua ação com um grito suplicante e colocando-se diante da janela.

Não sei se isto o acalmou e fez com que repensasse seu intento. Talvez apenas o tenha desorientado. O certo é que me valeu a vida. Morávamos no último andar e jamais me ocorrera a idéia de saltar daquela altura. Assim, ele a empurrou e me arrojou apenas pelos degraus da escada de incêndio. Meu equilíbrio não permitiu que eu me ferisse. Para mim, foi menos doloroso cair desse modo do que teria sido para ele se eu tivesse o poder de inverter nossas posições. Mas não menos humilhante.

Fugi sob a chuva. Ele ainda foi atrás de mim, tentando afugentar-me, até escorregar nos degraus molhados. Quase me senti vingada. Eu então estava longe de suas vistas, correndo entre as poças de água na rua, banida.

Há muito tempo não tinha de me valer de minhas artimanhas. Há muito desconhecia o ardor da competição pela sobrevivência. Gatos não contam idade, mas eu sabia que já mão era jovem. Vivera muito e bem à custa da bondade dos homens; agora, era repelida pela sua avareza.

Começava a formular um conceito de ironia que me faria rir se não estivesse exemplificado justamente na minha condição. Mas lá estava eu. De volta às vielas escuras e aos becos úmidos da vida boêmia.

De bom grado retornaria à antiga casa da família, ao conforto sobre as pernas de Pai, à diligência de Mãe e aos jogos com Van e Mar. Se eu me lembrasse de onde procurá-los. Desconhecia qualquer caminho capaz de me conduzir à sua morada. Aceitei que estava só. Que fazer? Contar com a piedade de quem se dispusesse a oferecer uma tigela de leite a um gato à sua porta? Pôr, então, meu precioso couro à mercê dos caprichos de um estranho, que poderia apadrinhar-me ou oprimir-me? Misturar-me à sarna e à fome de irmãos menos favorecidos, engalfinhando-me com eles pelos restos de carne numa coxa de frango que as moscas cobiçavam? Deixar-me tiranizar pela força dos maiores, prescindindo do melhor quinhão do lixo fétido das casas?

Fiz de tudo um pouco. Ninguém me pode acusar de repetir meus métodos. Mantive-os variados e nem sempre eficientes. Tive de reaprender a contar com meus instintos para ser criativa em emergências e a contentar-me com cantos rígidos e reservados como os melhores leitos disponíveis. Acho que então já não era metade da formosa gata que fora um dia. Estava magra e suja. Mesmo assim, não deixei de prover a mim mesma certa diversão que advém do perigo e, devo admitir, da desonestidade. Já no primeiro dia que passei naquele retiro forçado, roubei a um mendigo decrépito um naco de pão com presunto que uma alma caridosa lhe haveria dado. Ele dormia profundamente e foi fácil apanhar-lho da mão. Mais tarde, saciada mal e mal a fome e com alguma investigação, descobri que ele estava morto.

A vida ali não era mesmo muito bela. Mas eu não pretendia ficar por tempo bastante para acostumar-me a ela.

Na semana que vem... a conclusão!


 

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