A brincadeira é a seguinte:
O escritor e pesquisador
Jean Canesqui me pediu outro dia: "Escolhe uma ilustração tua pra eu escrever um conto sobre ele." Escolhi um dos meus esboços-sem-compromisso preferidos, que segue abaixo, pois achei que ele era bastante sugestivo e desafiante para um escritor como ele. O resultado escrito não poderia ter sido melhor: o conto
Pêssego e Flor, delicado, sutil, tenso e envolvente, que vocês podem conferir abaixo, junto com o desenho.
Pêssego & FlorPêssego dedilha as três cordas da cítara.
O corpo é a curva perfeita sobre palha do tatami (01). Uma dobra circunscrita desde os primeiros tempos para ser mais donairosa do que cômoda. Pêssego paira sobre si mesma, amparada pela música de calar banquetes, fugindo de tudo, buscando o nada. A cabeça remota de impertinências. Destarte, ficaria para sempre, no conforto da ausência... Se aquilo dolorido e persistente não fizesse a carne traidora da alma.
(Mais uma vez)
O dedo é intenso. A corda se quebra.
Pêssego é seqüestrada do reino a flutuar acima das coisas para a Terra sob ele, sólida e inegável.
_É a primeira corda que vejo você quebrar desde...?
Pêssego não percebeu Flor entrar. De repente, uma assistência para a solidão.
_Desde sermos meninas?
_Desde antes de sermos mulheres, Pêssego.
Flor fala a verdade. Cortante. Mas não fere por crueldade e, sim, somente porque o fato é o fato e ele simplesmente corta.
Pêssego depõe a cítara em seu canto de descanso.
A delicadeza é teatral numa vida espetacular.
Flor:
_Decidiu?
_Que há para decidir?
Flor suspira.
_A oferta de seu danna (02).
Agora, a verdade veio orvalhada. Mágoa molhada. Se a levasse com os dedos aos lábios pintados, sentiria o gosto salgado da lágrima. Todavia, Flor não pranteia. Não as vistas da outra.
_Devo dizer a resposta que já sabe, minha irmã?
_Comenta-se que o senhor Yanamoto a deseja muito...
_Está sendo vulgar, Flor.
_O viúvo lamenta pela finada, que não lhe trouxe filhos. Culpa dela, obviamente. No entanto, o senhor Yanamoto acredita, com muita fé, dizem, que sua escolhida, além de ser uma grande mulher de arte, poderá ser também uma mulher de filhos.
_Pare...
_O que diria seu danna ao saber que a natureza lhe forneceu muitas artes, menos a da maternidade...
TAPA!
O golpe corre como corre o relâmpago pelo céu. Rápido. Inesperado. Breve. Aguarda-se o esperado perseguidor do raio. O Trovão. Enfim, o que estava represado transborda e Flor é só água.
Pêssego a fita. Fria. Um primeiro olhar de gelo em seu rosto nevado pela maquiagem. O segundo é um olhar de alma e de carne. A gueixa se desfaz da arte de ser e abraça a mais nova desmoronada e soluçante.
_Desculpe! Desculpe! Não queria que fosse de Yanamoto. Seu lugar é aqui.
_Como eu poderia fazer tal coisa. Você sabe...
_Eu sei, Pêssego. Eu...
_É impossível atender tal pedido.
_Perdoe-me, estou louca... Você queria, não queria?
Pêssego é silencio.
_ Você o aceitaria, não? Vejo como são vocês, quando estão juntos. Vi quando segurou na mão dele quando escreviam sobre o papel, como se o papel fosse o corpo um do outro. Se pudesse...
_Se pudesse, seria outra vida.
_Perdoe-me, estou louca, Pêssego.
_Também padeci por essa loucura.
_Por Yanamoto?
_Também. Porém, ele não foi minha primeira insanidade.
_?
_ A primeira aconteceu quando minha mãe leiloou você, Flor.
Flor a contempla. Pêssego se completa.
_Quando leiloou a última donzela do okiya (03).
Sorriso germinal em Flor.
_Não é verdade.
_Minha loucura naqueles dias de desgosto?
_ Que eu fui a última donzela dessa casa naqueles anos _ Vaticina Flor.
Pêssego deita os olhos. Na mira, mãos alheias, invejadas por não serem as suas, porém amadas por poder tê-las.
_ Na verdade, não fui donzela por muito tempo. Você...
_ O senhor Yanamoto iria se indignar mais ainda.
_ Naquele dia, Flor, quisesse eu ser senhora de todas as estrelas da noite. Navegaria pelo ocaso em uma canoa e laçaria uma a uma com uma rede até ter todas. E, uma a uma, eu daria a minha mãe cobrindo lance por lance. Mas naquela época eu era dela tanto quanto você, talvez mais até. Nem podia lhe dar uma estrela do mar.
_No entanto, deu-me constelações depois...
Flor se solta de toda sua arte em vida. Rola no chão como se não tivesse sido uma gueixa a vida toda, e sim uma gata preguiçosa. Malandra.
_Então, não serei a nova oneesan (04) sobre este teto?
_ Terá que se conformar comigo como tal, Flor, minha irmãzinha.
_É seu por direito.
_Não há “direito”.
_Se ainda dúvida, visite o Kenban (05) e pergunte. Sua mãe deixou para você, a filha. Para quem mais ela deixaria?
_Nosso tipo de...
Pêssego se detém sem força. Flor é forte e conclui.
_Mulher?
_ Nosso tipo de mulher não deve ter filhos. São as boas alunas que herdam.
_Você é a maior aluna.
_ Se soubessem...
_ Não sabem. Você será como sua mãe.
_Não!
_Deixará ir-me pelas ruas desacompanhada?
Pêssego responde a ronha de Flor, ousando uma curva feliz no lábio escuro.
_Não. Saíra respeitosamente, acompanhada.
_Por um homem que confia?
_Pelo que eu mais que confio.
Flor desafia.
_Você?
Flor é deveras desafiante.
_Eu pretendo sair muito, Pêssego. Como me espera me acompanhar tanto e cuidar das outras e do okiya?
_ Você não sairá muito.
Flor e mais um desafio
_ Se um danna meu me quiser, você me dará?
Silêncio.
_ Se um danna meu me quiser como quis o seu, você me dará?
Pêssego novamente é uma fruta cujo sulco é o silêncio.
_Pêssego...
_ Aí está livre para decidir. Teu desejo...
_Meu desejo é o desejo da oneesan dessa casa.
_E qual o desejo da oneesan?
_ A oneesan sabe.
Pêssego se levanta e flutua em passos de imperceptível brisa até ver no espelho o inverso dos arabescos no quimono e no obi (06) devidamente amarrado atrás, em sua cintura.
_ A oneesan conhece mesmo o que deseja?
_Uma mulher deseja, Pêssego?
Flor adentra no reflexo na marcha de uma sombra indicando a quanto vai a morte do dia, grávido da noite.
_...Flor.
E o espelho de cada uma na sala, os olhos em cada órbita, reflete a busca de ambas. Profere Pêssego a verdade dita por sua mãe. Dita por outras. Dita por todas.
_Somos mais que a maioria das mulheres. A nós, é legítimo o desejo.
Flor solta o obi e se desabrocha, fazendo-se de si uma perfeita florida e transmutando por essa magia Pêssego de fruta silenciosa a abelha rainha, com seu ferrão inerente.
_ Disse minha mãe: Sou mais que uma mulher. Sou menos que um homem.
Flor a nega e a afirma.
_Você, mais do que qualquer um, pode ser o que quiser.
Os seios de Flor não são rígidos, quase caem. Porém, são fartos e deleitosos, próprios para alimentar bebês e homens famintos.
Tal qual as duas irmãs de vida e de alma, o desejo e a inveja se urdem fraternos no pulso a ecoar entre os seios planos e sem significado de Pêssego. A fome pelo o que não tem em si e o que pode tomar para si.
_Sou o que minha mãe me fez com o amor e com o egoísmo.
Flor além de tola é sábia.
_Amor e egoísmo são redundantes. Queremos sempre próximo a quem amamos, mesmo aprisionando e o adoecendo. Infelizmente, o okiya não é lugar para meninos.
_É lugar para fêmeas, assim minha mãe me prendeu a ela, fazendo-me filha. Não. Nem filha, mas uma criança que ninguém sabia de onde vinha. E o que eu sou hoje, minha Flor pálida?
_ Uma mulher de arte. Senhora desse okiya. Minha senhora...
Momentos mortos.
_Se quiser... Meu senhor.
Anos anteriores a uma única respiração sequer das pessoas nessa sala, a mãe de quem viria a se chamar Pêssego ofereceu a Arte do Alívio ao seu mais estimado cliente. Não atendeu a um pedido. Para ele bastava a música e o diálogo. Apenas ofereceu seu bem querer desinteressado.
Preparou o assalto do amor como o Senhor da Guerra se prepara para a batalha. A Senhora do Amor traçou estratégias. Cogitou táticas. Ouviu conselheiros.
Comprou o saber das ocultas e singulares ciências sensuais da grande oiran (07).
Do Bordel Verde.
A casa ditosa das mulheres do prazer. A casa cercada por plácidas e prateadas lagoas, cujo fundo é obscuro, pois é profundo. Por onde as crianças temem passar, porque falam que naquelas águas se abrigou um Vampiro do Rio, apaixonado por essas mulheres e seus talentos de ardor e de brasa. Mentiras de esposas solitárias e magoadas, certas que a conhecida predileção desse ser infame por sangue infante afastaria seus pequenos apaixonáveis.
As senhoras da luxúria podiam tomar seus esposos, mas as crianças sempre seriam de suas mães.
A Senhora da Luxúria foi a mestra da Senhora do Amor. Ensinou as quatro dezenas de maneiras diferentes de se amar e de fazer um homem morrer por um momento entre suas pernas.
A esmerada aluna fez a prova, ao algemar o amado em sua tenaz, da qual o cadeado era seus caprichosos calcanhares.
O prisioneiro retribuiu o cárcere, prendendo-a na adamantina liga feminina.
A maternidade.
Entretanto, o danna, cujo nome não deve ser mencionado, não admitiria esse filho.
A dama que o carregava bem sabia. Ele casara um ano antes com a última mulher da casa ao lado da sua, cuja toda família fora tragada pela vida. Ele dobrou o poder que detinha e agora se senta entre homens maiores, dos quais antes nunca encontraria. De boa semente, já fez seu herdeiro. O primeiro varão. O legítimo.
Não poderia permitir um bastardo e a pulverização de sua grande herança.
Tremendo o temor das prenhas fêmeas diante da ameaça que se avizinha, a dama se armou de dupla mentira.
Mentiu ao atribuir a autoria daquilo a levar consigo a outro cliente, do qual o nome também necessitava ser tratado com discrição por variados e justos motivos.
Logrou também ao dizer que quem nasceu não foi mais um varão (os deuses abençoaram a semente desse danna), mas sim uma menina.
Desse modo, a desconfiança do pai fora superada pelo desprezo e pela segurança. Um homem pode tomar o que é seu. O que uma mulher pode fazer?
Suas visitas se escassearam e a mãe se mudou dali, antes que a previdência o fizesse ser mais do que distante, o fizesse inclemente.
Devia ter dado seu filho. Gueixas não são mães. Esposas são mães e essa gueixa não era esposa. Então, mentiria novamente.
Ela não seria mãe. A criança continuaria a ser menina, porém, ela não seria sua filha, seria a compra prematura de uma aluna. Então, não haveria querelas. O menino era uma menina como todas as outras do okiya que montou, só que adquirida antecipadamente. Uma excentricidade talvez duvidosa, no entanto perfeitamente aceitável.
Condenar um homem ao rebaixo mutilado de ser uma mulher não era um crime por demais cruel? Talvez, todavia, para tal infâmia, havia um contrapeso:
Nesses tempos que ser mulher é ser menor que um homem, ser uma Mulher de Arte era ser maior que ser uma mulher de casa. Então, o que melhor uma mulher pode ser do que ser uma gueixa?
Menos que um homem, mais que uma mulher.
Justo? Talvez não. Compensatório? Talvez sim.
A mãe chamou seu fruto de Pêssego, porque seu cheiro era saboroso como a sedutora lembrança de um em todo o seu doce e sua pele era sedosa e suculenta a ponto que lhe gerar um incivilizado desejo de devorá-lo, para alimentar seu amor esvaziado e protegê-lo novamente dentro de si, numa gestação sem fim.
Flor veio depois.
De onde veio e como se chamava, não é relevante a nada. Entrou para a casa antes do sangue lhe eleger mulher. Chamaram-na de Flor. Obviamente porque assim o era e porque é sempre conveniente a uma gueixa ser uma flor.
Aprendeu durante os dias os segredos de ser uma Mulher de Arte.
E aprendeu num dia o segredo de Pêssego, que não era mulher.
Aconteceu fora do okiya, na neve invernal, no banho quente das fontes vulcânicas, sozinhas, observadas apenas pelos macacos brancos das montanhas.
Rapidamente, Flor se despiu e mergulhou no líquido borbulhante.
Pêssego apenas a mirava. Com face interessada na aventura molhada, porém com a cabeça baixa, envergonhada.
Flor, que desde broto era fascinante, a persuadiu com gloria e vitória.
Pêssego abriu o quimono e, livre de tecidos e embustes, juntou-se à amiga no calor da água fervida que da terra vinha.
Foi quando, que por comparação dos dois corpos despidos de tudo, panos, pêlos e segredos, que se viu a verdade.
Flor era côncava e Pêssego era saliente.
Nessa hora mais sincera que nunca, um pacto de amor e de verdade se fizera e elas se fizeram irmãs. Quase únicas. Uma alma una.
Ambas descobriram, anos mais tarde, quando os pêlos e volumes complicaram a tessitura do engano, que o amor delas era amor maior que o da pequena fraternidade.
Ao leiloar a virgindade de Flor para o cliente mais generoso, a mãe de Pêssego cravou na carne e na alma de ambas, uma dor cuja sangria foi de plena simetria.
Depois do triste comércio, uma frente à outra, entre lágrimas e lamentos, confessaram aquilo que somente se revela quando quase se perde.
O artifício se agravou. Sob a farsa da amizade feminina e fraterna, atuavam nas coxias os atores num calmo e quieto ensaio amoroso, quando o estratagema era retirado do jogo para prevalência do gozo.
_Se quiser, Pêssego, será.
A carne.
Chama.
Um laço é desfeito e outro tem o nó reforçado num aperto.
A seda cai.
Obi e quimono se derramam e escorrem pelo chão de palha entrelaçada.
De cada uma, três kanzashis (08) e um pente são retirados, libertando o cabelo sobre a derme hiberna da pele nua, junto com os brincos de casco de tartaruga.
Despidas de sua beleza artificial, as gueixas desaparecem, restando apenas homem e mulher em deleite natural.
Dessa arte candente, Pêssego, encaixe experiente nesse mundo livre a deslizar, faz o que gosta se fazendo de pouco saber. Cabe a Flor, sua contraparte em mais uma atuação de impostura, impor-se e fingir a lhe ensinar o que já foi ensinado, travestindo, por malícia e manha, a ciência bem conhecida em indesculpável ignorância.
A lição é verbalizar o prosaico amar em todas as suas delicadas e agudas flexões.
Inclusive, quando aluna choca a mestra ao compensa-la de súbito pelo o que lhe foi pretensamente revelado, ao lembra-la que ela é ele e ao toma-la, mostrando que quem é, de fato, ela.
Um segredo do corpo por outro segredo do corpo.
Flor, unida com Pêssego, divide o lendário seppun.
O amar com a boca.
A paixão entre os dentes, na ponta da língua, entre os lábios.
O amor a devorar. O amor devorado.
O que os estrangeiros chamam de beijo.
(01) Tatami: Tatame.
(02) Danna: Amante da gueixa. Protetor.
(03) Okiya: Casa das Gueixas.
(04) Oneesan: Gueixa mais velha. Guia das gueixas aprendizes.
(05) Kenban: Cartório de registro e controle das atividades das gueixas
(06) Obi: Cinto usado em conjunto ao quimono.
(07) Oiran: Prostitutas mais experientes, as quais geralmente administravam os bordeis.
(08) Kanzashis: Jóias decorativas para o cabelo.Fonte:
http://www.culturajaponesa.com.br/htm/gueixa.html