quinta-feira, julho 21, 2005

Tudo por teu beijo

ou a "insistência do portuga"

Pedi-te um beijo, ó paulistinha empinada, que te custara, Patrícia, Fernanda ou Gisele, que me interessa teu nome, queria um teu beijo e só. Negaste-mo, então segui-te cidade adentro, pedindo amiúde que tomasses comigo uma bica antes de eu tomar o comboio para casa, 5 minutinhos e um beijo teu depois, não quiseste. Fui até a paragem do teu autocarro, quis saber se te agradava algum desporto, alguma equipa, se preferias o livro à televisão, se gostavas de bandas desenhadas, nada, resposta alguma, menos ainda o beijo teu que era tudo o que eu queria. Disse-te que as tuas peúgas coloridas eram bué, três vezes ou mais pois não me compreendeste da primeira e da segunda a dizer que as peúgas eram bonitas e que te vestias com bom gosto. É mal então um gajo ser gentil? Pois tocou o teu telemóvel e deixaste-me de banda, voltaste-me as costas, a mim, que não te pedia mais do que um beijo, trabalho infernal que é este de convencer uma rapariga a deitar-me beijos ainda que às faces. Voltaste-me as costas. Paulistinha empinada! Pois estava a olhar para os autos que passavam velozes quando te pedi e te exigi pela última vez um beijo, gritaste-me não, que não, que nunca, portuga safado, por isso mesmo te empurrei e deixei que beijasses primeiro a capota do Ford e depois o asfalto da rua que ficou todo vermelho do teu sangue. De tola que eras preferiste beijar o chão, quando fora mais fácil beijar-me a mim. Toma!

segunda-feira, julho 18, 2005

Mia: Capítulo 3

Eu nunca passara por tal experiência, mas é claro que sabia o que era uma fêmea prenhe. Confesso que temi maiores ameaças à minha autoridade. Tornei-me insegura e requisitava atenção a todo tempo. Só não esperava que Jo fosse justamente aquele que procuraria satisfazer-me. Na verdade, por conselho de Emma.

– Querido, Mia tem estado muito carinhosa. Acho que ela sabe que vai ganhar um irmãozinho.

Aquilo o enfastiava.

– Que irmão, Emma, a gata não é sua filha... Cuidado com este amor. Não fique distraída depois que o menino nascer, ou pode acabar amamentando a gata em lugar dele.

– Não seja bobo. Ah, olhe para essa carinha. Por que você não brinca um pouco com ela?

Eu protestaria se previsse que ele seguiria a sugestão. Com toda a delicadeza que era peculiar a criaturas da sua qualidade, ele largou a lata de cerveja vazia na mesa ao lado do sofá, passou a mão por baixo do meu corpo e me ergueu no ar, pousando-me bruscamente sobre suas pernas. De ventre para cima. O homem queria a morte!

Arranhei-lhe a mão e ele, com um gemido, levantou-se, fazendo-me cair no chão. Nem Mar e Van, quando pequenos, poderiam ser tão estúpidos.

– Droga! Ela me arranhou!

– Você não combina mesmo com animais, querido.

Talvez porque ele mesmo fosse um animal, e dos mais imundos. Emma poderia ter se casado com um rato. Ao menos, eu me divertiria com ele. Estava farta de Jo.

Para não inspirá-lo a me castigar, saltei pela janela e fui respirar o ar da noite na escada de incêndio.

Ali, eu tinha muito mais liberdade do que na antiga casa, mas isto não voltava minha preferência à vida que levava então. Era nostálgica até o extremo da capacidade felina, que não é invejável. Minha memória é muito seletiva: interessa-se quase que só por odores e outros detalhes familiares e práticos, como as pessoas e coisas das quais gosto ou não. Naquele momento, agachada sobre o corrimão que precedia o primeiro lance de degraus, eu procurava lembrar-me de minhas situações prediletas na antiga casa.

Van e Mar acotovelando-se no corredor, arrastando tiras de pano para que eu os perseguisse. Mãe seduzida pela minha aparente inocência, esquecendo-se da vassoura com que pretendia dar-me uma lição de disciplina. Pai coçando meu pescoço, sem dar importância às suas calças que eu enchia de pêlos. Emma ainda jovem, sentada comigo nos joelhos diante do espelho. Eu perambulando no escuro, ao ressonar da casa, escolhendo a cama onde iria passar a noite, acomodada junto a uma curva de cintura ou um braço acolhedor.

Meus ouvidos jamais me deixaram à deriva. Voltei-me subitamente para um outro solitário que se aproximava, subindo a escada em direção ao mesmo corrimão no qual eu me encontrava, cauteloso, mas sem vacilar. Era de um branco poluído de cidade, de pêlos híspidos, esbelto e lento. Um sem-teto como eu já fora. Devia ter passado toda a sua existência nas ruas – julguemo-lo por seu aspecto. E era um tanto idoso.

Primeiramente hostilizei-o com olhares. Um estranho é sempre um estranho. Em geral, eu teria rosnado à primeira vista do intruso. Cordato, ele manteve a distância. Não devia ter um nome. Eu estava inteiramente acostumada a nomes, mas não o suficiente para esquecer-me de que eram invenções dos homens, das quais os animais sem domicílio não partilhavam. Assim como as palavras. De modo que ele jamais precisaria delas para dizer-me o que disse com seu olhar firme:

– Você pode não me conhecer, mas eu já estava aqui bem antes da sua chegada.

Olhou para dentro da minha janela. Emma e Jo estavam sentados no sofá.

– Ora, você tem humanos. Parecem ser dos bons. Não?

Não senti vontade de agredí-lo. Pareceu-me antes um bom sujeito. Confesso que me apiedei do seu aspecto miserável. E há muito tempo eu não me relacionava com um do meu tipo de qualquer forma que fosse.

– Ela é das boas – respondi-lhe. – Ele é um completo imbecil.

– Bem, então não posso dizer até que ponto você é afortunada por tê-los. Qual dos dois dá as ordens? Normalmente, um deles acha que manda.

Pensei um pouco antes de assumir aquela intragável verdade.

– É o imbecil.

– Que lástima, jovem.

– A convivência ainda não se tornou impossível.

– Aproveite enquanto são seus. Quase todos têm vida longa. Mas, às vezes, partem antes de nós.

– É melhor que desapareça agora, velho. Se ele o vir aqui, quererá dar-lhe a sova da qual escapei. Tem inveja de nós.

– Está entendido, este é o seu território... Fique com a casa, mas deixe o teto para mim, sim? É o meu predileto.

Foi-se escada abaixo. Admirei-me de que um gato, vivendo da vadiagem, pudesse ser tão longevo quanto aquele. Mas que podia supor eu, que nada sabia de sua história?

Eu nunca ia receber Jo à porta. Houve, contudo, uma noite em que não pude deixar de fazê-lo. Ele vinha com Emma e eles traziam uma novidade.

Eu passara antes disso um bom tempo sem ver Emma. Ela recomendara ao marido que, em sua ausência, não se esquecesse de me alimentar e de ser bom comigo. É claro que ele acatou o primeiro conselho. Não ia querer que ela se deparasse com sua querida gata morta por desnutrição. Quanto ao segundo conselho, não posso dizer que não tenha tentado seguí-lo. Não me dirigiu palavra ou olhar ferino durante todo o tempo em que ela esteve fora, o que era muito mais gentileza do que se podia esperar dele.

De modo que, quando ele a trouxe de volta, fui dar-lhes as boas-vindas tão logo ouvi a chave girar na fechadura.

Nos braços de Emma repousava qualquer coisa de porte semelhante ao meu, envolvida por um lençol. Logo que se sentou no sofá, fazendo ruídos delicados para o seu pacote, chamou-me para exibir-mo. Saltei para o seu lado e vislumbrei aquela criatura plenamente pobre de pêlos, trêmula e enrugada, que era o seu filhote. Então, disse a Jo:

– Feche a janela. Esta brisa pode fazer mal ao bebê...

Ele fez o que ela pediu, mas, em seguida, veio tomar-lhe a criança.

– A brisa não lhe fará nada. Olhe para ele! Um menino forte. Tão forte quanto o pai.

E ergueu-o bem alto nas mãos. Mas o filhote começou a chorar terrivelmente como só um filhote humano faz.

– Não é nada, não é nada... Isso. Pegue-o, Emma. Vou abrir uma cerveja para comemorar.

– Veja bem, só uma...

Aos poucos vi que a presença do bebê era mais fascinante do que ameaçadora. E ele, menos digno de cólera do que de piedade. O seu nome – porque era muito pouco falado naquela casa – eu não pude aprender bem. Passei a pensar nele apenas como o Pequeno. Por mais que crescesse, nunca teria de mim outro título. Era uma coisinha pálida e de poucas palavras. Não me afagava. Tampouco molestava-me.

Nem sei se era capaz dessas coisas. De qualquer modo, depois de ele se tornar um pouco maior e mais forte, aproveitei-me de sua passividade e encontrei um bom companheiro para as noites mais frias. É claro que trancavam a porta do quarto para evitar minhas invasões, mas há muito tempo eu sabia que, para abrí-la, bastava saltar sobre a maçaneta e girá-la.

Disse que ele se tornara mais forte, mas não era exatamente o que Jo esperava de um filho seu. O Pequeno cresceu o bastante para mostrar-se ativo e interessado no mundo, como qualquer outro filhote, mas identifiquei nele uma estranha atitude diante de tudo. Eu já vira outras crianças humanas e elas eram ruidosas e agitadas. Mas ele apresentava constante abatimento. Logo largava das coisas que despertavam sua atenção. Movia-se vagarosamente. Por tudo isso e por observar os olhares piedosos que Emma lhe oferecia e as olhadelas impacientes com que Jo o desaprovava, constatei que havia algo de muito errado com ele. Foi isso o que, pouco a pouco, tornou o ambiente onde vivíamos menos suportável.

– Ele não é normal, Emma, você sabe disto. É frágil. Segura tudo tremendo, nem parece um homem. E na idade em que está já devia saber falar melhor!

– Pelo amor de Deus, o que quer que eu faça?

Deus. Tenho certeza de que era um nome, mas nunca soube a quem se referia.

– Você é a mãe dele. Eu não passo o dia inteiro fora de casa? Não sustento esta família? Você não pode ao menos educar melhor o menino? Ele já é doente. Quer que seja também um desajustado?

– Eu não tenho culpa – alegava ela. Lá vinham novamente aquelas lágrimas. Estavam se tornando tão comuns que eu já não tinha dúvidas sobre sua causa. – Eu dou a ele toda a atenção que posso. Ele... tem algum problema, você sabe. Nasceu assim. Talvez nós possamos mandá-lo a uma escola especial...

– E mais isto: ele também não é inteligente.

– Eu não posso fazer nada, seu estúpido!

Neste momento, ele a fustigou com uma expressão que eu nunca havia visto. Parecia que atribuía a ela a culpa por todas as suas insatisfações. Como podia uma criatura ser assim egoísta, que fazia frente até mesmo ao mais arrogante dos felinos? Comparando-me com ele, descobri em mim mesma um sentido de generosidade e compaixão que me faria renegada pela minha própria raça. Até conhecer Jo, eu imaginara todos os seres humanos dotados de um talento para amar uns aos outros e uma boa vontade quase canina. Concluí, assombrada, que eu sabia muito pouco sobre sua índole simples e imperturbável. Hoje, sei que são tão volúveis e indisciplinados quanto nós próprios, ou mais. Jo foi, de fato, o primeiro ser humano perverso que já tive o desprazer de conhecer.

Ele avançou na direção dela e, por um momento, julguei que fosse agredí-la. Mas deteve-se e a maneira como olhou para Emma fê-la baixar de imediato os olhos e cobrí-los com as mãos.

– Todos na minha família são inteligentes e fortes – ele cuspiu. – Na sua, não posso saber. É uma vergonha!

Pela primeira e última vez em toda a minha regalada vida, desejei ser humana. Desejei o poder de gritar: Emma! Levante-se daí e reaja, arranhe-o, expulse-o! Valia-me mais estar vagando faminta pelas ruas do que viver naquela jaula onde nós duas e o pobre filhote éramos dominados por aquele macho desprezível. Ora, o que teria sido de mim se todos se deixassem iludir por minha aparente fragilidade, desprezando-me e condenando-me aos becos da vida?

Eu desejava ser humana. Ser humana e saltar sobre ele, empurrá-lo pela janela, vê-lo despencar pelo edifício até que o chão duro da calçada, lá embaixo, findasse sua existência.

Mas ele deixou a sala e ninguém ousou fazer nada.

A partir de então, jamais reafirmei meu apego a Emma, nem ela, tampouco, procurou-me. Não que eu ignorasse seu sofrimento, mas sempre quis que ela se desvencilhasse do homem, e, no entanto, via-a decadente e anulada por aquele condicionamento auto-imposto. Acho que eu não queria mais o amor de alguém assim.

Ela não era mais a Emma de minha infância, era uma fêmea dobrada e emudecida e o mérito da sua desgraça era todo do macho que ela escolhera como pai de sua prole. O mito da minha preferida estava obsoleto. A única coisa que eu queria era preservar a honra de sua memória, vingando-me de algum modo do seu violador. Minha vaidade o pedia. Mas eu era pouco além de uma observadora.

Na semana que vem... o penúltimo capítulo de Mia. O quê? Já? Bom, eu avisei que era uma novela rápida. Estejam aqui. Divirtam-se!

terça-feira, julho 12, 2005

Mia: Capítulo 2

Para alguns, a proposta de Mia - uma gata que narra a vida de uma família sob seu peculiar modo de ver o mundo - pode parecer extremamente ingênua. Mas esta autobiografia felina ainda tem muito o que revelar.

Uma vez eu disse que meus textos são muito simples e diretos, quase não admitindo subleituras. Pois bem, desta vez, me afasto um pouco de mim e peço que compreendam Mia tão metaforicamente quanto desejarem. Em contraste com os mimos e afagos que fazem parte do mundo da gata doméstica, a raiva, a inveja, a rejeição e a maldade humanas são avaliadas por uma protagonista inumana. A despeito de seu próprio egocentrismo, Mia perceberá muito em breve que o mundo lá fora não gira ao seu redor. Dura lição para os mimados. Quanto a Emma...

Bom, pessoas. Leiam a novela. Avaliem por si mesmos. É o melhor conselho que posso lhes dar.

Grata, sempre.

Camila


O vínculo que se manifestava a todo momento entre os menores e os maiores fazia-me recordar qualquer coisa que até hoje não sei definir com certeza. Jamais tive um pai, mas sei que tive uma mãe e também tive irmãos. Sei que era uma mãe porque tratava de mim como podia durante o pouco tempo em que estive junto dela. Sei que os outros eram irmãos porque disputavam comigo sua atenção. Isto é um irmão: um sujeito inoportuno que deseja o mesmo que você e procura roubar aquilo que é seu. Ainda assim, é possível estimá-lo, parece-me. Não tive chance de averiguar isso. Qualquer coisa me apartou daquela primeira família, mas não lastimo o fato. Até onde pude ver, estava bem melhor entre os homens.

Mãe era um tanto reservada, mas jamais maldosa. Falava pouco comigo. Punha a minha comida no prato mesmo antes de eu lha requisitar e gritava quando eu me aninhava na enorme e tentadora cama onde ela dormia com Pai ou quando arranhava as almofadas do sofá. Por mais que façamos uma coisa, é impossível que os homens compreendam que não devem nos impedir. Eles teimam em nos retirar dos nossos lugares prediletos.

Pai me permitia melhor exercer minha personalidade. Nós dois gostávamos muito de dormir. Ele costumava provocar-me com qualquer objeto interessante – um lápis, uma fita de pano –, eu fingia que o arranhava e esse era o nosso jogo. Até permitia que me fizesse festas na barriga. Ele passava o dia ausente e retornava quando a cidade lá fora já estava escura. Eu costumava ir recebê-lo à porta, o que o fazia sentir-se muito especial, segundo creio.

Todavia, Emma é quem era realmente especial. Dentre todos, tinha o melhor cheiro – um cheiro de coisa nova e revigorante. Comunicava-se bem, com olhares e gestos. Foi ela quem me levou a gostar do sorriso humano. Dizia-me uma porção de coisas que nem sempre eu compreendia, mas seu tom de voz me mostrava o que queria que eu soubesse. Também não penso que eles compreendessem tudo o que diziam uns aos outros. Pela maneira com que pronunciavam os nomes, podia-se interpretar o que desejavam ou sentiam. Era muito fácil, mas eu simulava inocência quando ralhavam comigo, convencendo-os de que não entendia uma só palavra. Logo me cediam sua acessível piedade ou uma última queixa, e eu me livrava do castigo maior.

Emma cansava-se facilmente de suas bonecas, preferindo, geralmente, brincar comigo. Não é de se admirar, já que as bonecas eram estranhas pessoinhas imóveis, que não davam atenção à sua conversa. Quando Emma ia lavar-se, levava-me consigo para o banheiro. Senão, eu ia até lá com meus próprios pés. Conversávamos o tempo todo. Falava comigo bem mais do que com as outras pessoas da casa, e quer-me parecer que preferia minha companhia à de qualquer um. Não que isto me impressione. Afinal, sou uma ótima ouvinte. Somente nisto posso ser equiparada aos cães.

Não tenho certeza do motivo pelo qual os homens usam roupas para tapar suas peles. Talvez seja porque tenham tão poucos pêlos no corpo que sintam frio a todo momento, como num inverno interminável. Achava interessante observar sua freqüente troca de roupas. Despiam-se e vestiam-se de novo pelo menos uma vez a cada dia. Não tinham nenhum prurido quanto a estarem nus diante de mim, mas achavam intolerável a idéia de o fazer diante uns dos outros! Será que tinham medo de descobrir que eram todos iguais?

Os anos os tornaram muito diferentes do que eram no começo.

Enquanto eu passara de menina raquítica a elegante dama de pêlos sedosos e barriga satisfeita, Van e Mar eram já quase homens feitos – e bem mais quietos –, Pai perdera uma boa parte dos poucos cabelos que ainda tinha na cabeça, Mãe se parecia bem mais com um barril e Emma crescera notavelmente: era agora uma fêmea plenamente crescida, com seus cabelos castanhos, encaracolados e muito ajeitados, e passava fora de casa mais tempo do que eu gostaria. Com esta exceção, não houvera em minha vida mudança digna de nota. Essencialmente, eu continuava vivendo da mesma forma como meus ancestrais devem ter vivido quando primeiramente se depararam com homens que reconheceram sua grandeza.

Aqueles anos de ociosidade e gula não fizeram senão acentuar meu temperamento exigente. Mesmo assim, ninguém se podia queixar de que eu fosse preguiçosa demais: era brincalhona, embora impaciente e, de certa forma, agressiva. Não tanto quanto certos colegas de telhado – gatos que lutavam ferozmente pela posse de seus territórios –, mas considere-se que eu era uma gata doméstica, que não tinha de vasculhar o lixo das casas em busca da minha ceia e também não enfrentava o frio, a chuva e outras misérias.

Eu fui especialmente irascível no período em que desejei a companhia de outros gatos. Bem, minha família compreendia isto; cada um passaria por coisa semelhante algum dia – se já não o havia feito –, lidando com a necessidade de contato íntimo com os de sua própria espécie. Mesmo assim, mantiveram-me trancada na época, inimigos da idéia de que eu me promiscuísse com machos vadios. Não eram tão ingênuos quanto eu pensava e sabiam, tão bem quanto eu, que o produto final de meus requebros seria um bando de gatinhos encantadores. Acho que não queriam ter de dedicar a outros a afeição que me tinham. Posso compreender isso. Via-me oscilando constantemente entre a euforia e a depressão. Sou mesmo uma pessoa difícil. E tenho de admitir que, nesses dias, tornei-me insuportável.

No entanto, tão logo abrandou-se tal obstinação, eu me esqueci dela e obtive licença para voltar aos telhados. Um gato é um atleta e um explorador. Por mais que ame o trono do rei, nunca abandonará por completo as aventuras da senda dos vagabundos.

De qualquer modo, aquele ocasional desconforto não se repetiu. Lembro-me apenas de que fui levada até um certo homem, o qual fez-me dormir por meio de algum artifício inebriante. Foi um episódio muito estranho. Seja o que for que me tenha sucedido em suas mãos durante o sono, sei que despertei com a pele de minha linda barriga costurada e o certo é que não voltei a ter acessos de lascívia...

Emma continuava tão alegre como quando eu a conheci, embora muitas vezes eu a tenha pego a choramingar pelos cantos da casa. Lágrimas são coisas que acontecem com os olhos dos homens quando eles estão descontentes. Se bem que já vi pessoas chorando em momentos que não podem ter sido senão de felicidade. É mais uma das estranhas reações humanas diante da vida.

Emma sempre foi muito diferente de mim. Não sabia impor sua vontade às pessoas. Penso que a única vez em que a declarou abertamente foi quando contrariou a mãe e me trouxe para sua casa, de longe a melhor coisa que já fez. Talvez ela há tanto tempo não opinasse que as pessoas se haviam esquecido de que ela tinha desejos. Afinal, não podiam adivinhar.

Eu ia esfregar-me em suas pernas – não havia outro modo de perguntar-lhe a causa das lágrimas. Aparentemente, minha abordagem funcionava com tranqüilizante, pois ela me apanhava no colo e começava a falar comigo. Talvez me dissesse tudo o que não ousava dizer aos outros. Pouco depois, acalmava-se.

Um dia, Emma chegou em casa muito animada. Um rapaz vinha com ela, de mãos dadas. Seu nome, como soou-me, era Jo.

Ficaram um bom tempo conversando com Pai e Mãe, sentados na sala com xícaras nas mãos. Riram. O tal rapaz certamente foi muito apreciado. E Emma não veio falar comigo enquanto o indivíduo não se dispôs a partir.

Depois daquele dia, várias vezes vi o tal Jo entrar e sair da casa. Pai e Mãe gostavam muito de recebê-lo e Emma mais ainda de trazê-lo. Quando sozinhos, praticavam carícias que a meu ver não deveriam causar muito prazer. Ele parecia irritar-se com ela às vezes, quando o beijava por mais tempo do que lhe parecia adequado ou simplesmente dizia algo com que ele não concordasse. Parecia tão temperamental quanto eu – com a diferença de que jamais Emma teria de mim mostras de aborrecimento, mesmo que me incomodasse enquanto eu dormia. Mas, na presença de Jo, ela praticamente se esquecia da minha existência.

Um dos mais famigerados atributos felinos é o da inconstância. Em contrapartida, também somos conhecidos por nosso caráter ciumento. Em pouco tempo decidi que, a não ser pela ínfima possibilidade de o amigo de Emma mostrar-se delicado e amável para comigo, ele iria sofrer.

Raramente arrisquei aproximar-me dele; quando pela primeira vez o fiz, notei que tentou ser cortês, afagando minha cabeça. Escapei-lhe e cheirei sua mão. Não simpatizei com seu odor. Encarando-o bem, já vi que não conhecia nada sobre gatos e também não estava interessado em versar-se nesta admirável arte. Não queria nada comigo. Era o tipo de pessoa que eu ignoraria em qualquer outro caso, mas não nesse. Afinal, ele era a novidade no meu território e estava tomando algo que era antes unicamente meu – a atenção de minha preferida. E quem era ele para permitir-se tamanha audácia?

Descobri-me capaz de sentir rancor. Descobriria, mais tarde, maiores motivos para senti-lo e a inutilidade que isso era.

Não demorei a encontrar nos ares a previsão de mudanças.

Até então, não experimentara nada parecido. Deparava-me com uma nova sensação de que qualquer coisa me aguardava e que não haveria como fugir dela.

Um grave defeito humano é negligenciar, nas ocasiões mais importantes, a vontade dos animais com quem vivem. Eles nos incluem em planos dos quais não temos notícia até que nos vejamos irremediavelmente contaminados por suas decisões. Foi exatamente deste modo que eu vim a saber sobre a união de Emma e Jo.

Como Pai e Mãe haviam feito há muito, eles reuniram seus pertences e suas vidas. Todos estavam muito agitados e, ao que parecia, felizes. Entre lágrimas e risos, os humanos manifestaram plenamente o absurdo de sua natureza. Então, atiraram as malas ao carro e eu às mãos de Emma. Meteram-me na apertada gaiolinha que antes haviam usado para levar-me ao homem que costurou minha barriga e, por um instante, temi que pretendessem costurar mais alguma coisa. Mas logo compreendi que Emma estava me levando consigo. Fomos nós duas. Nós e aquele invasor em nossas vidas perfeitas.

O nossa nova residência ficava no último andar de um edifício cinzento, pequeno e antigo. Era muito bonita por dentro, embora não fosse tão grande quanto a outra e certamente estivesse muito afastada de tudo o que eu conhecia. Mas era mais do que o bastante para uma gata, uma mulher e um homem.

Fiquei perplexa ao adentrar o lugar desconhecido, consciente de que poderia nele passar o resto de meus dias. Mas a adaptação nunca foi impossível para mim. Depois que a alcancei, minha vida prosseguiu sem grandes incômodos, mas eu dormia sozinha num aconchegante cesto que Emma, precavida, forrara com seu velho cobertor para mim. Talvez porque quisesse desfrutar em particular da intimidade adquirida com Jo. Talvez porque soubesse que eu me recusaria a dividir um leito com ele.

Não importava que nós reservássemos um ao outro nossa quase total indiferença. Ele não gostava de mim, eu não gostava dele e éramos conhecedores disso. Tínhamos um pacto de inimizade. Até este ponto, compartilhar a casa era tolerável. Ele estava quase sempre fora dela e, durante este período, eu podia reinar e ser razoavelmente feliz.

Quando Emma começou a inchar, percebi que íamos ter uma visita permanente.

Na semana que vem... já sabem. Aqui.

sexta-feira, julho 08, 2005

Três macacos

restolho de 31.01.2005

"Você não pode ser tão cego", foi o que pensei ontem à noite.

Mas não disse. Sou bem de cuspir na mão que me afaga, mas não cheguei a esse ponto.

Eu lhe pedi que apontasse um defeito. Um defeitinho só. Que seus olhos pudessem enxergar na minha cara deslavada. Na minha alma ainda por lavar. Onde fosse, sendo em mim.

"Não enxergo o mal. Não ouço o mal. Não digo o mal. Pare de procurá-lo onde não está."

Que faço eu com semelhante resposta? Você é um amálgama dos três macaquinhos que tapam olhos, ouvidos e boca. Não dá entrada em sua alma para o que não presta. Não vibra sua língua na freqüência dos insultos.

Você me diz que sou perfeita. E eu ainda lhe ponho defeitos.

Queria enganá-lo para sempre. O plano era fazer-me segura, insuspeita, alguém que olha para o sol como para um igual, sem nunca exibir seu lado negro. Aquele lado onde não bate luz. Não é o meu traseiro, diabos. O lado onde a benevolência nunca incide feito raio luminoso. Esse lado que eu esfrego na sua cara todo dia e você insiste em não ver.

Tão cegos os olhos.

Quero tanto ser mais como você.

Pedi-lhe que me ensinasse. Que me emprestasse por tempo indeterminado essa tranqüilidade nata, essa inabilidade de acumular ódio, essa completa incapacidade de identificar um inimigo na sombra. Sua inocência. Já tive uma, não tão completa, mas de todo modo eu não sei onde a larguei. Onde ela me largou. Em que ponto se soltou da minha mão que se fechou em punho permanentemente. Punho de socar.

Sua completa, absoluta inocência. E você ma recusou.

"Não há nada que ensinar. Não quer ver o mal, então não o veja. Não o escute. E não o diga." Quisera eu missão assim fácil. Nunca é. Ser como você. Como? Eu o observo e só absorvo minha vergonha. Inspiro a sua saúde e me consome a doença. Adoro a sua alegre insanidade, o seu deslocamento na multidão, a sua solidão induzida, reduzida na sua lucidez.

Não confio no meu discernimento, na minha noção de luz e sombra, forma e distância. Devia adotar a sua política: sorria e cale a boca. Você é meu macaco cego, surdo e mudo. Meu louco feliz.

Permita-me este lamento. Só este momento de autocomiseração. Não sou covarde. Sei rir e chorar. Mas tenho medo de um dia entrar em curto. Não quero me atirar de um prédio por paranóia, tenho a certeza única do desamor.

Sou refém dos meus ímpetos, aprendiz do seu silêncio. Infeliz de mim: nunca serei você.

quarta-feira, julho 06, 2005

Mia, uma autobiografia felina: Capítulo 1

A primeira versão de Mia, uma autobiografia felina foi escrita em janeiro de 1999, quando eu contava 18 anos, e está carregada da ingenuidade que imperava em minha vida naquela época e que, por que não admitir, não diminuiu muito até hoje.

Mia passou por uma revisão de conteúdo em 2003 e desde então permanece intocada. Sempre há aquilo que mudaríamos. Sempre há aquilo que deixaríamos como está. Mas nunca há tempo ou mesmo razão para embarcar numa obra que não termina jamais, não é mesmo?

Para quem acha que Caia na noite teve capítulos muito curtos e se estendeu demais, uma boa notícia: Mia tem apenas 5 episódios, via de regra bastante longos. Portanto, espero que se divirtam com a noveleta e não economizem críticas.

Contra-indicado para pessoas más e feias que não gostam de gatinhos. Contra-indicado para quem não gosta de surpresas.

Pois vamos a isso.

Ela nunca soube de onde vim, se eu já tivera um outro lar ou um outro amigo. Sempre me fez muitas perguntas, mas nunca esperou de mim respostas. E nada disso fez diferença.

Ocorreu há muito tempo. Não saberia especificar quando. Não me importa o tempo que passa, mas a maneira como passa, e nunca as lições que me oferta, mas somente o prazer que pode me proporcionar.

Mas prossigo: houve uma noite na minha vida de pobretona em que ela me encontrou. Era lépida e jovem. Caminhava com uma mulher robusta, de corpo muito sólido – quase um barril de carne – que a puxava apressadamente pelo braço.

Nada pôde abalar seu interesse quando encontrou meus olhos na escuridão do beco, onde eu tremia. Seu rosto miúdo iluminou-se todo com o lampejo que só o mais jovens sabem lançar.

– Olha só, mãe – disse ela, com o dedo esperançoso em riste para mim.

– É um gato de rua, Emma. Deve ser arisco e cheio de doenças. Vamos embora.

Ela ignorou a mulher e veio a mim com uma graciosidade pouco comum entre os homens. Não sei se posso dizer que ela me escolheu ou se fui eu a escolhê-la. Mas minha vida de filhote esquálido e pulguento, apesar dos protestos de terceiros, chegou ao fim nos braços adolescentes de Emma.

Comparada à escuridão incerta das ruas, com suas crianças sentenciadas à orfandade precoce, a casa de Emma era um paraíso. Minha admiração diante do calor caseiro e de todas aquelas brilhantes luzes artificiais me valeu o primeiro de muitos elogios, logo que a porta da casa se fechou atrás de mim:

– Que olhos enormes tem você, neném! Mãe, veja que olhos lindos ele tem.

Houve algazarra dos irmãos menores quando ela me introduziu à família:

– Onde encontrou este gato?

– Que magro! E é bem feioso, não?

– Eu acho que ele está doente.

– É só um filhote, seus paspalhos – protestava Emma. – Meu gato. Não é feio nem doente, e vocês estão com inveja.

Acho que ela não tinha idéia do que era acariciar um gato. Causava-me mais desgosto do que deleite tentando passar a mão sobre minhas costas e ao mesmo tempo afastar-me dos dois rapazolas.

– É menino ou menina?

Nessa hora levantou-se o homem maior da casa, até então sentado imponente e pachorrento na sua poltrona, com um jornal nas mãos. Seu vulto atemorizou-me de início. Como os mais astutos dentre os do meu tipo, eu já sabia reconhecer, após breve exame visual, os que iriam me amar. Não é algo que aprendamos com nossos genitores ou em algum livro de ensinamentos, como os homens insistem em fazer. Nós não adquirimos um profundo conhecimento das coisas da mesma maneira que eles. Simplesmente passamos a sabê-las. Está na nossa natureza.

Ele se aproximou de mim, virou-me de barriga para cima e, naturalmente, esperneei. Nada é mais desagradável do que mostrar o ventre a um desconhecido. Perco todo o meu equilíbrio nessa posição e, por conseqüência, o controle da situação.

Meu suplício foi curto. Uma mera olhadela.

– E então? – perguntaram os circunstantes.

– É uma fêmea.

Finalmente compreenderam. Eu, que até então não me dirigira a ninguém, ergui meu vergonhoso miado de felino raquítico. Julguei que Emma fosse me engolir com seus carinhos melodramáticos.

Então, eu estava em casa.

Aquelas dóceis pessoas não sabiam o que fazer comigo. Era óbvio que não estavam acostumadas a ter um líder natural no lar, isto é, um gato. Não que sejamos explicitamente eleitos como líderes ou tenhamos o hábito de dar ordens, mas nossa condição nativa sempre nos consegue o privilégio de ver tudo funcionando em nosso benefício, desde que empreguemos para tanto uma fração de nossa inteligência. Até minha chegada, a tarefa de chefiar parecia pertencer ao homem maior, mas mesmo ele rendeu cordialmente suas atenções a mim. Estavam fascinados com cada uma de minhas idiossincrasias.

Adaptei-me à placidez do confinamento a às cerimônias do convívio com outros seres em uma velocidade que quase me fez esquecer-me de quem era. Uma criatura caprichosa e indomável – mas venal ante a oferta de afago, comida e cama. Certamente eu aproveitava os ensejos de içar-me ao telhado, lançando-me a outras janelas e conhecendo outras famílias. Uma filha da rua, como tantos outros menos afortunados do que eu, que, sem modéstia, sempre fui um belo espécime, o que certamente me rendeu o primeiro olhar de Emma. Sua família compreendeu a razão de sua admiração por mim após o execrável banho a que fui submetida no dia seguinte à minha chegada.

Que crueldade fazer um indefeso filhote passar por aquilo. Fizeram isso muitas vezes depois, a despeito de minhas tentativas de fuga. Mas admito que naquela primeira ocasião eu estava mesmo precisando de mais do que um de meus banhos de língua.

Emma insistiu em mostrar-me o resultado daquele cuidado. Após me enxugar como podia numa toalha, segurou-me diante de algo que eu até então desconhecia, que vinha a ser, conforme deduzi, minha própria imagem. Estranhei aquela superfície plana na qual encontrava a cara de um outro gato, magro, preto e hirsuto, com imensos olhos amarelos.

– Aí está você. Isto aí é um espelho, não vá se assustar.

E ela ria. Nunca compreendi a razões do riso. Alguns humanos riem mais do que outros, mas absolutamente não vejo qualquer motivo para esta manifestação barulhenta, que surge de suas bocas em horas tão diversas.

Talvez façam isso por distração, sem querer ou para interromper o silêncio, que eles gostam tanto de desrespeitar. Os homens fazem muito ruído, mas prefiro-os aos carros. Por mais que saiba que os carros, diferentes dos cães, não mordem e tampouco têm opinião própria, nunca deixarão de me assustar. Já os vi causarem estragos inenarráveis às pombas idiotas que bicam a rua e até mesmo a gatinhos desavisados. Só me sinto segura quando estão quietos, encostados às calçadas. Nada faz com que um gato deixe de temer aquilo que ele decide temer, como nada o convence a fazer o que ele não quer.

Pois bem. Indiferente às minhas especulações, mas nunca à minha presença, pouco a pouco, a família foi aprendendo a me satisfazer. Não poderia querer mais nada além da calma que os dois menores me negavam. Quando eu tentava dormir, buliam comigo com a mesma curiosidade com que as crias de uma gata olham e cheiram tudo o que existe, após abrir os olhos. Eu tinha vontade de espancá-los. Faziam a todo momento perguntas ao homem maior:

– Se nós a chamarmos com um assobio do outro lado da casa, ela vem?

– Não, mas se fosse um cachorro, quem sabe...

– Ela abana o rabo quando está feliz?

– Não, meu filho, só os cachorros fazem isso, não os gatos. Se a cauda dela está se mexendo, ela deve estar zangada. Deixe-a em paz.

– Ela morde?

Eu estava prestes a responder por mim mesma quando o homem se ergueu e veio em socorro de minhas futuras vítimas, apanhando-me nos braços.

– Vão brincar com outra coisa, meninos. Os gatos só gostam de brincar depois de dormir.

Poucas vezes um homem disse algo tão sábio. Somos inteiramente diferentes dos cães. Não temos a necessidade de viver em matilhas e não temos de eleger líderes que não nós mesmos. Se eu fosse um cão, ter-me-ia deixado impressionar pelo tamanho e pela autoridade do homem maior, oferecendo-lhe minha lealdade e mostrando-lhe o meu ventre, em sujeição. São serviçais natos dos homens, embora saibam, como ninguém – nem mesmo eu – manipular a vontade dos humanos, com seus olhos lacrimejantes e suas caudas inquietas. Estão sempre com as bocarras abertas e as línguas de fora, rindo até babar da cara dos homens, sem que estes o percebam. Não duvido que tenham bons corações, mas os cães são, na verdade, interesseiros e volúveis, e é por isso que muita gente os prefere. Nós, bichanos, somos francos demais para os sentimentos frágeis de certas pessoas.

Os humanos têm dificuldade em compreender o que se quer deles. Quase não sabem se comunicar sem a emissão de ruídos, a não ser quando sacodem as mãos, o que também é desairoso. Às vezes, fazem as duas coisas ao mesmo tempo, criando um resultado cômico e, depois, tedioso. De qualquer modo, gosto quando falam comigo. Sempre o fazem mais gentilmente do que quando se dirigem uns aos outros, o que se deve obviamente ao respeito que me guardam. Agradeço, por minha vez, ronronando ou miando, algo que até mesmo eles podem entender.

Percebendo que suas relações com o mundo se estabeleciam à base de barulho, passei a miar sempre que desejava sua companhia. Nem sempre podiam me atender, mas faziam o possível, e acho que se sentiam queridos por mim. É verdade que não eram muito inteligentes. Contudo, à sua maneira desajeitada, eram muito amorosos. Até os dois menores. Com o tempo, aprendi a tolerá-los e, depois, com a vinda tardia da maturidade, as duas pestes tornaram-se bons companheiros.

Não treinei minha memória para se ocupar com os inúmeros sons que os homens produzem. É claro que tenho coisas melhores com as quais ocupar-me. O curioso, no entanto, é que notei que também usam sons específicos para definir uns aos outros e às coisas. São nomes. Passei a saber quando se referiam às pessoas da casa e aos assuntos da minha alçada, como comida e banho.

Emma foi o primeiro nome que aprendi. Os menores tinham nomes que soavam como Van e Mar ou coisa que o valha. Os maiores eram Pai e Mãe para as crianças, de onde supus que estas denominações servissem para as pessoas que tratavam de nosso bem-estar e folgança – logo, eram Pai e Mãe para mim também. Pai e Mãe chamavam um ao outro por uma porção de nomezinhos que me pareciam fruto da natural indecisão humana. Era horrível. Pareciam não saber o que queriam um do outro, e penso que de fato nunca souberam. Mesmo assim, ainda estavam juntos quando me separei deles e penso que ficaram juntos até o fim. Seu senso de conveniência era tão apurado quanto o meu.

Quanto a mim, desde que ali pisei, fui chamada de Mia. É um bom nome, que irei manter até segunda ordem.

Não perca, na semana que vem, o segundo capítulo desta pequena saga felina!


 

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