Carne crua e artifícios
Subiram em direção à Avenida Paulista. Lá, viraram à direta e chegaram à Rua da Consolação. Fabiano seguia em silêncio e Liliana o imitava. Gostava do mistério.
Entraram num restaurante de esquina, modesto e acolhedor. O rapaz levou-a pela mão ao segundo andar, mais reservado.
– Tô morto de fome – declarou, por detrás do cardápio. – O que acha de pedirmos picanha?
A garota assentiu e ele fez sinal para um garçom.
– Picanha para duas pessoas, por favor.
– Ao ponto ou bem-passada?
– Ao ponto – respondeu Liliana.
– Mal-passada – emendou Fabiano.
O garçom sorriu e retirou-se. Ela se ergueu com leveza.
– Vou ao toilette...
– Será que podia aproveitar para tirar essas lentes dos seus olhos? Sabe... é que elas me dão aflição...
Lilian ferveu de ódio por dentro, mas nada disse. Estava disposta a contentar seu estranho colega; o sucesso de sua empreitada dependia da boa-vontade dele. Com um pouco de paciência, conseguiria o que viera buscar.
Mal erguera a mão para a maçaneta da porta do banheiro, esta abriu-se bruscamente pelo lado de dentro. Uma garota saiu e atirou-lhe um olhar torto, mas Liliana não se preocupou com isso. Tinha de ser tolerante com as outras. Não eram tão bonitas: não tinham culpa de invejá-la.
Quando retornou à mesa, já sem as lentes, olhou fixamente para Fabiano, ansiando por um elogio.
– Castanhos – murmurou ele. – Seus olhos são castanhos. Tão comuns. E dá pra ver que são amendoados, não oblíquos, como você tenta fazer parecer.
O sorriso que ensaiava no rosto dela caiu morto.
– Isso te ofende? Desculpa! – exclamou ele, falsamente compadecido. – Sabe, não há nada de errado em ser comum. A superfície não importa, é só uma casca. No fundo, todos são únicos, mas é claro que você já sabe disso.
Ela não respondeu. Olhou por sobre o ombro de Fabiano e viu que a garota do banheiro sentara-se numa mesa no fundo, de onde podia olhar – e de fato olhava – diretamente para ela. O rapaz chamou-lhe de novo a atenção:
– Não fique zangada com a minha pergunta, mas por que seu cabelo é fúcsia?
– O quê?
– Fúcsia! É a cor do seu cabelo. Mas você já sabia disso também, certo? A sua cor natural deve ser... castanho... acinzentado! Acertei?
– Que importância isso tem?
– Eu é que pergunto, foi você quem tingiu... E deixe-me adivinhar: esse pó todo na sua cara é porque você tem sardas. Ama sua pele branquíssima, que contrasta com suas roupas pretas, mas odeia as sardas nas suas bochechas, por isso afoga-se em maquiagem. Sardas nos deixam com cara de crianças levadas. As pessoas não nos levam a sério quando temos sardas, não é mesmo? Mas eu gosto...
Ao mesmo tempo em que procurava uma boa resposta para os comentários indiscretos que ouvia, Liliana encarou instintivamente a garota na mesa dos fundos. Ela tinha tal quantidade de sardas que parecia estar com o rosto todo enferrujado. Esta, sim, poderia usar um pouco de maquiagem. Não desviava o olhar de Fabiano e Liliana, e começara, agora, a sorrir.
– Não precisa ficar constrangida, Lilí – continuou o rapaz, agarrando uma de suas mãos com a sua, dura e gelada. – Eu sei que você ainda rói as unhas, por isso usa estas de porcelana. Sabe, eu li, uma vez, que quem come as unhas tem desejos secretos de autodestruição. É como se a pessoa quisesse devorar a si mesma, começando pelas extremidades, que são mais vulneráveis. Mas eu não preciso olhar para as suas unhas para saber que você quer se autodestruir; se não quisesse, não estaria aqui, comigo! Devorar a si mesma, aniquilar-se por completo! Putz, será assim tão horrível ser você?
Liliana articulou uma interjeição indefinida, siderada. Não podia acreditar que aquele garoto, antes tão gentil, estivesse a insultá-la com tamanha desfaçatez. Quem ele pensava que era?
– Vamos, Lelé – continuou ele. – Eu sei que você está usando sutiã com enchimento!
– Vá se danar! Seu filho da puta, cale a boca! Você...
Na mesma hora, o garçom se aproximou trazendo o jantar e ela teve de recobrar sua compostura. Respirou fundo. Dois grandes e suculentos pedaços de picanha foram colocados em seus pratos.
– Liliana: você é uma menina linda – murmurou Fabiano. – Linda mesmo. Não precisa de todos esses artifícios!
Por baixo de toda a pintura, ela corou; não sabia, agora, se devia bater nele ou beijá-lo. Fabiano trouxera-a da expectativa ao ultrage e então ao acanhamento; parecia ter o dom de manipular suas emoções. Emudecida, ela cortou a carne; estava vermelha por dentro. Fez sinal para o garçom.
– Tá totalmente crua. Passe de novo... – e olhou para o rapaz, que manejava seus talheres com avidez suína, levando grandes pedaços de carne à boca.
– Isto aqui é muito gostoso! – falou, entre uma garfada e outra.
– Mas não dá para comer essa coisa! – balbuciou a garota. – Está pingando sangue!
A cada vez que o garfo espetava a picanha, esta vertia generosa quantidade do líquido vermelho, que ia acumular-se nos cantos do prato.
– Tá com nojo? Mau começo, menina, mau começo...
Em poucos minutos, ele consumira todo o conteúdo do prato; quando o garçom voltou com o jantar de Liliana, sua forme já se perdera. Não tocou mais sequer nos talheres.
– Isso pode te deixar doente, sabia?
– É, eu sei. Já, já, vai acontecer.
– O que vai acontecer?
A resposta veio diretamente das entranhas do rapaz, que grunhiram horrivelmente. Ele se contorceu.
– Minha vez – ganiu, e correu para o sanitário masculino com as mãos sobre o estômago.
Na semana que vem... uma nova personagem sacode a trama. Capítulo 3: Pingando sangue!