quarta-feira, junho 29, 2005

Caia na Noite: Capítulo 10 - FINAL

O povo da noite

Um som contínuo, irritante. Algum aparelho ligado? Tudo escuro. Seria a morte assim? A escuridão completa e a tortura eterna de uma máquina que sugava... poeira?!

As pálpebras se ergueram de súbito. Muito claro! Apertou os olhos feridos. Luz do dia entrando agressiva pela janela. Seu quarto. O aspirador de pó.

– É melhor você se levantar, Liliana, sua mãe me mandou limpar o seu quarto e ela não tá feliz por você ter passado a noite fora. No meu tempo, menina de família ia pra cama às dez, não era essa pouca-vergonha, não...

– Lucinéia?

– Até ontem, esse era o meu nome, né? Que cara é essa, menina, andou bebendo? Tá com cada olheira...

Liliana não ouvia mais os queixumes da doméstica. Olhava abismada para a luz que entrava no cômodo. Meio-dia? O calor estava forte e as plantas no jardim, quase torradas, mas seus olhos se acostumaram à claridade. Estranho... não era para ela se sentir letárgica ou queimar diante do sol ou coisa assim?

– Sua amiga Cris ligou, disse que precisa do livro de Biologia que você pegou emprestado, aquele com a capa azul, e o caderno de Química. Ela vai passar pra pegar as coisas dela à tarde, mas acho que tá puta da vida com você, porque pediu pra deixar tudo separado e pra eu entreg...

– Lucinéia – falou Liliana, seca – cala a boca. Quero que você e a Cris vão pro inferno.

De que lhe importava que a menina viesse buscar livros e cadernos e que estivesse zangada e que sua mãe não aprovasse seus passeios à noite e que a empregada fosse uma velha mal-amada que só ficava reclamando? Por que iria querer saber de todas essas coisas se fora morta, ressuscitada e morta de novo, e ressuscitada outra vez, e manipulada, enganada por um par de mentirosos, sacanas... Como podia?

Nada havia mudado. Ela sonhara com seu maior desejo atendido, acreditara em tudo o que eles lhe haviam dito, deixara-se convencer, iludir... mas estava de volta à sua vidinha medíocre, cercada de pequenos luxos, pequenas ambições e conquista nenhuma. Uma vidinha de domésticas tagarelas, mamães entediantes e amigas inconvenientes. Como alguém podia brincar assim com sua vontade? Como eles ousavam?

Nesse dia, ela almoçou cabisbaixa, respondendo às perguntas dos pais com monossílabos. Seu ar de profundo desalento desencorajou um interrogatório mais incisivo. Depois, trancou-se no quarto, pensando, pensando.

Ela nunca saltara do alto de um prédio, ou não estaria viva para contar. Talvez nunca tivesse sido levada até lá por aqueles dois e eles nem existissem. Não!

No meio da tarde, tomou um banho, meteu-se numa roupa qualquer, apanhou a bolsa e saiu.

Acotovelou uma série de pessoas no metrô, mais por despeito do que por necessidade. Foi pela Rua Augusta abaixo, pisando duro e fazendo com que os transeuntes se desviassem, instintivamente, do seu caminho. Entrou na casa no 1387. Lá dentro, parou diante da sala que se abria para o corredor, com suas mesas velhas de fórmica e seu abajur cafona. A hippie fora de época que vira na outra vez estava sentada sobre uma mesa e fumava um cigarro cheiroso. Liliana procurou conter a raiva que sentia de tudo e de todos.

– Você sabe a que horas o Fabiano chega?

A hippie, sossegada, soltou fumaça e falou, com seu hálito de canela:

– Ele não vem.

– Não vem hoje?

– Não vem hoje, nem amanhã, nem depois de amanhã.

– Mas e o sebo?

– Tá aí...

– Quem tá cuidando do sebo? E... dos quadros lá em cima?

– Um cara veio e comprou tudo. E o sebo, o Fabiano vendeu pro Ianko. Já tinham acertado faz tempo.

– Ianko?

– O tio de boina, gringo...

– E aonde foi o Fabiano?

– Pergunta pro Ianko.

Liliana teve de se contentar com aquelas informações, pois a moça fumante saiu do ar feito alma desencarnada em fim de sessão espírita.

– Com licença – disse, parada na porta do sebo, quase tímida. – O senhor é o Ianko?

– Sou – respondeu o velho, carregado de um estranho sotaque. Era baixo, tinha um longo nariz, óculos quadrados e um aspecto pitoresco, mas não muito acolhedor. Não desviou os olhos do seu gibi em preto-e-branco.

– O senhor sabe como faço para encontrar o Fabiano?

– Não sei, não. Ele me vendeu isto aqui e sumiu. Vai perguntar lá no Portuga.

– Onde?

– No boteco no final do quarteirão.

Não se atreveu a amolá-lo mais. Supôs que o lugar deveria ficar mais abaixo na mesma rua. Desceu. Diante de um boteco, várias cadeiras e mesas de metal estavam espalhadas pela calçada, dificultando a passagem, e um letreiro encardido dizia Portuga.

Liliana foi encarada por duas mulheres gorduchas de meia-idade. Uma delas tinha na mão um copo de vodka com gelo. A outra tinha no colo uma enorme bolsa de academia; de dentro dela, espichava-se a larga cabeça de um gato laranja, peludo e ranzinza. A mulher tratava do seu pêlo com uma escova de cabeleireiro.

Liliana se sentiu constrangida diante dos olhares que lhe eram lançados e teve o impulso de falar.

– Por favor, alguma de vocês conhece o Fabiano ou a Marisa?

– Conhecemos o Fabiano – falou a do gato.

– E a Marisa, claro – emendou a da vodka, com um sorriso esquisito.

– Sabem onde posso encontrá-los?

– Não – foi a resposta em uníssono.

Estava desolada. Não teve ânimo de pedir que lhe informassem quem mais poderia saber do paradeiro dos dois. Sentia que iria acabar percorrendo a cidade toda se insistisse nisso.

Estava claro que eles não queriam ser encontrados.

Naquela noite, sorrateira, a garota subiu no topo de um prédio já conhecido. Não foi difícil; moleques mais novos do que ela, ansiosos por deixar sua assinatura de spray na metrópole, galgavam posições bem mais perigosas. Ela simplesmente usou o elevador e as escadas, enquanto uma garoa muito fina começava a cair sobre a cidade, refrescando a noite quente e deixando pontinhos escuros nas calçadas.

Lá no alto, ela ficou de pé sobre a borda do edifício e respirou fundo, olhando para baixo. Ia mesmo fazer aquilo? Devia realmente experimentar aquela sensação? Precisava de mais provas de que nada tinha sido como planejava e de que fora enganada?

Ela apertou os lábios.

– Tenho que admitir que você é persistente.

Voltou-se rapidamente para descobrir a fonte dessa voz a poucos metros de onde estava. Marisa, de braços cruzados, olhava para ela com amarga franqueza, sem a nota de ironia que costumava marcar seus gestos.

– Sei que não sou a pessoa que você mais queria ver neste momento, mas vou ter que servir. Me conta, Liliana... o que é preciso fazer para que você desista? Nós te tratamos que nem lixo, fizemos com que encarasse suas piores falhas e ameaçamos sua vida por mais de uma vez. Você já poderia estar morta. Ainda não sofreu o bastante? Ainda não aprendeu?

Ela não respondeu. Seus olhos se estreitaram num esforço hercúleo para impedir a saída das lágrimas que ameaçavam sua compostura.

– Você não é má pessoa. Só assistiu demais à TV ou leu os livros errados. Pensa em tudo o que quer jogar fora, mas pensa direito, como nunca pensou antes. Se, no final, você não tiver mudado de idéia, não precisa me procurar. Só me chama que eu vou aparecer.

A garota de cabelos espetados se virou para ir embora. Mas deteve-se.

– Acredita em mim quando te digo, mocinha – falou. – Você ainda tem muito o que aprender sobre a vida antes de querer alguma coisa com a morte.

Marisa saltou.

E assim a história de Liliana se acaba, gente. Ela volta? Encontra-se com novos vampiros? Corre perigo? Alcança uma maior compreensão do valor da vida? Sei lá. A tendência é que ela continue por algum tempo a ser a parte mais ingênua e pretensamente onipotente de todos nós. Mas quem pode dizer com certeza?

Caia na Noite acabou, mas o Demo continua firmemente Sentado em Meu Ombro. Voltem sempre para conferir suas novas diabruras!

Na semana que vem inicia-se uma história diferente, arrancada do fundo do baú da minha pobre literatura. Uma família. Uma menina. Um casamento. Gerações entrelaçadas. Conflitos inenarráveis. Filosofia de telhado (vocês já vão saber o que é... rs). E tudo contado sob o olhar suspeito de uma vira-latas que da noite para o dia se torna gata de madame. Leiam tudo isso em Mia: uma autobiografia felina.

domingo, junho 26, 2005

Deus por um instante






sexta-feira, junho 24, 2005

Caia na noite: Capítulo 9

Imortal, afinal

Comentários indecifráveis. Outra língua?

Risadinhas. Quem era?

Sentia-se zonza. Estaria drogada?

Os olhos se abriram com dificuldade para o céu de nuvens purpúreas. Era quase dia. Liliana estava deitada no chão. Num movimento brusco, um rosto pintado de sardas e cercado de cabelos amarelos surgiu diante dela.

– Acorda pra cuspir – mandou Marisa. Ela sorria com simpatia, e isso era estranho.

Liliana se ergueu com a graça de um filhote de girafa recém-parido. Escorou um joelho no outro. Todos os seus membros estavam bambos.

– Como se sente?

– Eu... não sei.

– Fecha os olhos. Respira.

Ela obedeceu, automática. Inspirou e expirou o ar diversas vezes até começar a se sentir confortável dentro do próprio corpo. A sensação era boa. Melhor do que nunca.

– Agora, como se sente?

– Eu tô bem. Mas... o que aconteceu?

– Não lembra?

– Não. – Estava confusa, tentando emendar suas memórias. Não sabia o que ocorrera no alto do prédio antes de perder os sentidos, nem como podia ter desmaiado. Mas ainda estava no mesmo lugar, acompanhada de Marisa e Fabiano, e a atitude de ambos parecia completamente alterada. Como tudo era confuso...

– Você pediu – respondeu a loura. – E nós demos.

Liliana compreendia. Tateou o pescoço. Claro, deveria haver dois orifícios perfeitamente redondos ali. Buracos feitos por um par de dentes afiados! Pelo menos, imaginava que devia ser assim...

– Cadê as marcas?

– Que marcas? Não fica marca nenhuma. Você mudou. Não percebe? Respira, olha para tudo, sente a mudança no mundo ao seu redor e em você mesma.

Fabiano surgiu de trás dela e resumiu o que Marisa dizia:

– Agora, você é o que nós somos. – O rapaz riu e a segurou pelos ombros. – Sorria, menina. Você venceu! É uma de nós e a noite é sua. Vamos! Logo vai amanhecer.

– Mas...

– Vamos! – repetiu ele, matreiro, e afastou-se.

Antes que a garota pudesse questioná-lo, Fabiano correu para a borda do prédio e saltou. Entregou-se como um suicida, mas não caiu como um. Foi o pulo do gato, longo e gracioso.

Boquiaberta, Liliana o viu pousar com leveza num edifício ao lado, mais baixo. Ele sorria, convencido, galã de cinema, bonito como o diabo.

– Você também pode! – ouviu-o gritar.

Ela ouviu passos rápidos atrás de si e voltou-se a tempo de ter um rápido vislumbre da outra, que correu, também, em direção ao precipício. Marisa saltou e abriu os braços, como se planasse, pequena, esguia, uma garça loura que pousou ao lado de seu par, no prédio.

Lágrimas comovidas embaçaram as vistas de Liliana. Aquilo era lindo e improvável. Queria ir também. Fabiano acenava para ela.

– O que você tá esperando? – gritou. – Vem! Você não quer ser imortal? Este é o seu momento! Você pode tudo, Lilith! Cai na noite!

Era do que precisava. Recuou vários passos e parou. Era agora. Ela correu, veloz como nunca, e pulou. Entregou-se como uma suicida... e caiu como uma. A calçada foi ficando mais próxima, o estômago gelado, as lágrimas escorrendo para cima, varridas pelo vento, a boca aberta num grito sem voz e as gargalhadas de um homem e uma mulher gozando da sua queda.

Na semana que vem... a conclusão no décimo e último capítulo de Caia na noite: O povo da noite!

terça-feira, junho 21, 2005

Sem título 1

de quem me precede no vício maldito - parte 2

A falta de um título não diz nada, mas o subtítulo explica tudo. Irmãs a gente recebe quando nasce como uma maldição, uma bênção ou as duas coisas. Maldição de herdar vícios, manias, vocabulários. Bênção de nunca estar sozinha na própria estranheza.

Quem me precede no vício maldito são Fabiana e Daniela, nesta ordem, sim. A primogênita não nega a raça e lança hoje no Demo um poema de fazer virar as órbitas de qualquer amante. Não faltou inspiração.

Grata, sempre.

Camila


Olhos mortiços, dançando loucos nas órbitas
de estrelas que se ofuscam.
Gosto de suor, sangue, perfume na língua,
amor felino que arranha, roxeia, ronrona.
Lascívia do roçar de peles fumegantes,
de mãos espalmadas apertando os corpos contra si.
Pernas laçadas em nós cegos,
amarras e engrenagens da máquina do amor.
Procura frenética, desenfreada, dos recônditos
guardados, consagrados ao prazer.
O êxtase alcançado, inesquecível, cada vez novo,
sem igual, redesenhado, melhorado.
O encaixe dos corpos... merecia uma fotografia.
Algo que o imortalizasse... esse instante
onde se perde o chão, o fogo explode,
a luz se apaga, eu não sou eu,
você não é você.


segunda-feira, junho 20, 2005

Caia na Noite: Capítulo 8

Do alto da noite

Ele a tomou pela mão e a conduziu, cauteloso, pelas ruas. Cumprimentou alegremente as prostitutas encostadas aos carros na rua e um grupo compacto de homens que caminhavam muito juntos. Andaram por um longo tempo. Mas a garota não via ou não compreendia bem os cenários à sua volta; sentia-se tonta, anestesiada. Fora o susto, talvez, a tensão – ou a coisa que Fabiano lhe dera para beber. A cidade parecia feita de luzes enigmáticas e fantasmas de prédios.

Sentia, agora, duas mãos sobre seus ombros. Por entre a brisa que assobiava em seus ouvidos ouviu um sussurro:

– Tá pegando no sono, é? Abra os olhos, Liliana.

E ela os abriu. À sua frente, via o céu cinzento da noite urbana. As luzes e sons vinham de baixo, longínquos. Ela olhou para os próprios pés – um profundo abismo sob eles.

Saltou para trás, quase de um tombo, e foi amparada por Fabiano.

– Onde a gente tá? – perguntou, esbaforida.

– Como, onde? No alto de um prédio. Olha só a Paulista lá embaixo...

– Por que é que viemos aqui, o que você tá... – Interrompeu-se quando viu Marisa do outro lado, sentada perigosamente na mureta que os separava de uma queda fatal. Gostava cada vez menos dela. Marisa estava a par do fato e extraía dele imensa satisfação.

– Que foi? – perguntou, levantando-se devagar, com um sorriso torto. – Para uma coisinha tão ambiciosa e exigente, você tem estado bem assustada nas últimas horas. Como vai sua convicção? Abalada? Ou ainda tem certeza absoluta de que quer ser o que nós somos?

Liliana observou Fabiano de esguelha. Este desviou o olhar; estava claro que não tomaria um partido.

A garota respirou fundo.

– Eu tenho certeza – afirmou.

– Pois eu não tenho. – Marisa começou a caminhar lentamente em torno dela. – Ainda acho que você não tá preparada e não acredito que um dia vai estar. Você não merece o que temos, nem como prêmio, nem como castigo.

– E por que não?

– Porque não compreende.

O sarcasmo torceu a boca de Liliana num feio esgar.

– Você acha mesmo que é melhor do que eu, não é?

– O que eu acho não importa. Estou satisfeita com o que sou. Você, por outro lado, quer ser como eu... Só que ninguém nos escolhe. Nós é que escolhemos alguém quando queremos. Por que você acreditou que tinha o direito de exigir alguma coisa?

Ele me ofereceu.

As duas garotas lançaram olhares reprovadores a Fabiano, que fingia desesperadamente não estar lá.

– Amorzinho. – O tom de Marisa era perigosamente meigo. – Não devia ficar por aí brincando assim com as pessoas. Veja a dor de cabeça que você nos arranjou. Está contente?

– Desculpa, Ma... eu só queria me divertir um pouco.

– Sua praga! Em todo caso, menina, pode esquecer. Não vai rolar.

– Por que não? O que é que você perderia?

– No mínimo, a razão. Teria de ser doida pra te dar algo assim. Você me pergunta por quê. Eu explico. Você não gosta das pessoas, nem do mundo, nem de si mesma. Tudo o que faz demonstra que não tem nenhum senso de auto-preservação, amor-próprio ou mesmo apego à vida. Como é que você sabia que o Fabiano não era um tarado atrás de uma menininha idiota de cair na conversa dele? Como sabia que ele não ia te levar pra estrada, te estuprar e te largar morta no meio do mato?

– Ele não faria isso! – balbuciou Liliana, tentando afetar firmeza.

– Não faria mesmo – assentiu ele, muito tranqüilo. – Você não é o meu tipo. Mas foi muito imprudente pondo fé no que eu disse sem pedir nenhuma prova de que eu falava a verdade, não foi? Neste exato momento, pode estar sendo vítima de uma brincadeira de péssimo gosto só porque eu apareci na hora certa e te disse o que você queria ouvir. Você ouve e vê apenas o que quer, não é mesmo? Sorria para a câmera. ­– Abriu um sorriso idiotizado, apontando para Marisa, enquanto esta recomeçava a falar, atraindo de volta a atenção de Liliana.

– Imagina o estrago que uma coisa como você não iria aprontar de cabeça virada, achando que é a poderosa. Não é assim que as coisas funcionam. Em primeiro lugar, vem o bom-senso, mocinha; eu não daria poder algum a uma pessoa tão convencida, descuidada e mal-informada.

Liliana estacou, boca aberta, voz entalada na garganta, olhos marejados de raiva. Demorou um pouco para se libertar desse estupor. Quando o fez, foi com todo o ódio que era capaz de sentir.

– Vai pro inferno, sua vagabunda, você e esse babaca mentiroso, seus nojentos, arrogantes, filhos da puta!

Ela rosnava e cuspia como uma gata brava ao dizer isso, e ofegava. Os outros, porém, permaneceram impassíveis, até que a voz seca de Marisa sobrepujou o vento que uivava:

– Agora, chega. Fabiano, acaba com ela.

– Não. – Ele estava visivelmente perturbado.

– Que diabo! Eu mesma faço isso.

Liliana viu algo voar na sua direção. Seu grito foi cortado por uma mão na sua garganta. Depois, viu apenas a escuridão.


Na semana que vem, não perca o nono e penúltimo capítulo de Caia na Noite... Imortal, afinal!

sexta-feira, junho 17, 2005

Romantismo x Consumismo

No doze de junho eu o levei a uma loja de tênis porque ambos precisávamos de tênis novos para as nossas caminhadas pseudo-aventureiras. Ambos vimos o preço dos presentes que dávamos. Elas por elas. Tudo muito prático. Nada muito romântico, mas menos ainda obrigatório.

Hoje nosso primeiro beijo na boca faz aniversário como em todos os outros dezessetes. Ele sempre lembra. Nosso jantar romântico será na minha cozinha de azulejos cafonas e eterno cheiro de gatos, feito pela pior cozinheira que este mundo já viu: oui, moi. Arroz e feijão. Seu prato preferido.

Depois veremos um filminho de locadora de bairro e dormiremos numa cama emprestada, cujos donos não sabem que a estão emprestando.

Não tem preço!

Amor e sexo

verdade não dói

Sempre achei que amor e sexo eram a mesma coisa. Idéia de menina. Casar virgem. Perder o cabaço com o grande e único amor de uma vida.


Um dia descobri que costumam andar juntos, amor e sexo, mas não são inseparáveis e definitavamente não são a mesma coisa. Sexo, nenê, não tem nada a ver com amor. E não falo de música da Rita Lee fazendo hora extra como roqueira. Falo de sexo que é carne e amor que é alma.

Nós sujamos o sexo. Não tentamos limpar. Nós, nossos pais e avós vitorianos atrasados. Algo tão prazeroso só pode ser pecado. Jogamos o sexo no barro, pisamos nele e o expulsamos da sala de estar, da mesa no jantar, do quintal, do passeio à beira-mar. Aprendemos o silêncio do sexo, o constragimento do sexo. Até tivemos vergonha do amor. Menina casava virgem e não conhecia as poses que o marido praticava com as putas. Um dia houve liberdade e passamos a poder falar o nome do sexo, as coisas do sexo, suas cores, sons, cheiros, artisticamente, suinamente. Só para não sermos como a geração que envelheceu.

Hoje, menina não quer ser menina. Nasce sonhando em ser mulher, tem pressa de seios e insinuações. Pressa de pintos. Ontem era proibido falar. Hoje é obrigatório. Quem não falar e corar quando ouvir será castigado. Mas amanhã também seremos velhos com nossas manias e obrigações, com nossa liberdade enganosa que celebra a indiscrição mas não permite a espontaneidade, que encoraja o precoce e zomba do tardio. Que não admite a virgindade, ainda que sincera. Que faz da inocência genuína uma vergonha doente. Ai dos discretos: serão banidos. Ai das crianças: prontas ou não, serão atiradas na arena do adulto. Orgasmos múltiplos para você. Trepada 7 dias por semana. Se não rolar, trate de fingir, ao menos para contar aos amigos. Afinal, quem é você sem sexo?

O dever dói em quem é verdadeiro tanto quanto a proibição.

Fizemos do sexo uma coisa suja. Se limpasse estragaria. Boa parte da graça do sexo está nos palavrões sussurrrados, nos gritos que imitam dor embora expressem prazer, no tapinha-não-dói, no mamãe-não-quer-papai-não-deixa, na falta de escrúpulo. No segredinho encardido.

E o amor? Amor pede sexo. Mas sexo não pede amor. São irmãos que se confundem, se detestam, se adoram perdidamente e se afastam só para voltar a se agarrar.

Amor é imaculado. Sexo é imundície. Chafurdemos.

segunda-feira, junho 13, 2005

Recado para Gia

Gia,

Você deixou um comentário para Caia na Noite. Obrigada de coração. Só o que me impede de retribuir a atenção e entrar em contato como me solicitou é o fato de que não deixou um endereço de e-mail, site, blog ou similar, de forma que não sei como te encontrar. Podemos remediar isso?

Se preferir me escreva: nochesdemadrid@yahoo.com.br

Sim, esse e-mail vale para todos que desejarem me contara em particular, fora dos comment boards da vida.

Beijos.

Camila Fernandes

domingo, junho 12, 2005

Caia na Noite: Capítulo 7

Cantos escuros

Nunca vira antes aquela rua, que lhe pareceu imensamente feia; inclinada, larga, mas de calçadas estreitas. Apesar dos carros que passavam lentamente, as pessoas transitavam pelo meio da rua, sozinhas ou em pequenos grupos. Indiferentes, passavam por ela como fantasmas em direção à entrada de lugares ocultos. Tomada por um sentimento de opressão que jamais experimentara, Liliana ousou perguntar:

– Aonde a gente tá indo?

– A um lugar do qual você vai gostar e que vai te ajudar a enxergar melhor as coisas como elas são.

Alcançaram a porta pouco visível de um antro. Era guardada por um indivíduo alto e esguio, dono de cabelos de paina e uma beleza andrógina, indecifrável. Essa figura sorriu para Fabiano e Marisa, envolvendo-os num abraço lânguido, e devorou Liliana com assombrosos olhos negros, deixando-a entrar sem pedir um documento. Decerto, pensou, estava com um casal conhecido.

O interior do lugar era impressionante, quase onírico, com a fumaça de gelo seco que envolvia a tudo e a todos e as luzes que piscavam numa vertigem constante. Não se podia conversar ali dentro, o volume do som estava muito alto e a batida era rápida, alucinada. Liliana não soube explicar por que todos ali lhe pareciam tão estranhos e ao mesmo tempo tão familiares; muitos passavam por ela com arrogante indiferença, enquanto outros fitavam-na demoradamente com olhares de rapina, como se ela fosse um animal muito pequenino. Queria ir embora. E também queria ficar.

Percebeu que Fabiano não estava mais no seu campo de visão. Marisa, tampouco. Esticou o pescoço para procurá-los em meio às inúmeras cabeças ao seu redor. Em vão.

Foi quando passou por ela um rapaz. Lindo; espantou-se quando essa palavra tremeu em seus lábios sem que ela quisesse. A blusa preta se fundia ao denso cabelo negro que lhe descia pelos ombros. Um rosto de marfim voltou-se e olhos de jade fitaram-na, risonhos. Sem saber por quê, Liliana seguiu a figura que a cativara tão absolutamente.

Viu-se cercada. Ninguém parara de dançar, mas muitos queriam algo dela – o mais desavisado entre os inocentes reconheceria isso. Mas não sentiu medo. Ao contrário, cada vez mais via-se impelida a se entregar à multidão de rostos desconhecidos que a cortejavam. Onde estaria o rapaz bonito?

Liliana piscou, atordoada, vendo que as luzes de todo o local se apagavam e a música perdia velocidade, mudando para uma melodia grave, sensual. Sentiu então uma mão apanhar-lhe o pescoço logo abaixo da orelha esquerda. Firme, mas sem machucar. Ele a devorou com os olhos verdes e, em seguida, com a boca. Ela assentiu; há tempos não experimentava um beijo de língua como aquele.

Aquela boa sensação lhe foi violentamente arrancada. Alguém mais a agarrara pelos cabelos da nuca. A dor foi aguda, ela tentou conter a mão brutal, foi empurrada, o rosto de encontro à parede, o corpo subjugado por um peso desconhecido, garras lhe puxando o cabelo e uma respiração forte junto a seu pescoço. Um rosnado surgiu no seu ouvido:

– E se eu te ensinasse uma lição por ter vindo até aqui? E se eu te matar agora? Não é o que você quer?

– Não!

Sua voz foi abafada pela batida frenética, que recomeçou tão subitamente quanto havia cessado. As luzes voltaram a piscar e ela se virou, repentinamente livre de seu opressor. Todos dançavam e ninguém prestava atenção à garota em lágrimas no canto do salão.

Aonde fora ele? Ou ela? Não fora capaz de identificar se a voz gutural pertencia a um homem ou a uma mulher. Podia ter sido Fabiano. Também podia ter sido Marisa, ela tinha uma voz suficientemente grave para...

– Que foi?

Era Fabiano quem tocava seu ombro, fazendo-a pular. A namorada o acompanhava. Pareciam estar de bom-humor.

– Está chorando por quê?

Liliana esfregou os olhos, fungou uma vez. Antes que articulasse qualquer palavra, um copo passou da mão do rapaz para a sua.

– Toma isto, vai te fazer bem.

A bebida queimou sua garganta, mas ela não a identificou, nem se preocupou com isso. Sentiu-se aquecer por dentro.

– Eu quero ir embora, vamos embora daqui, pelo amor de Deus – pediu.

– É nisso que dá trazer criança pra balada. – Marisa afastou-se, enquanto Fabiano simulava um esgar de decepção.

– Já deve passar da 1h e estou sem carro, não posso te levar pra casa. Você vai ter que esperar até o metrô começar a funcionar...

Liliana cuspiu um palavrão, depois outro, e saiu cambaleando, as pernas feito borracha. Tinha de sair, qualquer lugar era melhor do que ali. Do lado de fora, ficou tentando avistar um táxi, pronta a fazer sinal, sem vontade de pensar no perigo.

– Liliana!

Voltou-se sem muito interesse para ver Fabiano passando pela porta do bar e indo em sua direção.

– Não vou de deixar sozinha por aí. Vem comigo.


Na semana que vem, momentos decisivos e tensão cortante: Do alto da noite!

quarta-feira, junho 08, 2005

Ela lambeu minha orelha

só lendo pra entender

Ela lambeu minha orelha.

Fê-lo com a delicadeza de um zéfiro nas manhãs antigas. Dríade, brincou no bosque dos meus sentidos. A ponta flexível vibrou no lóbulo e se encaixou nas cavidades retorcidas. Vai-e-vem. Labirinto úmido, labirinto inundado de sussurros, súplicas, ordens.

“Vamos?”

“Eu... vou.”

Foi meu vício quem respondeu.

Comi ambrosia nos seus lábios. Quis morrer nos seus braços – eu, a louca, ela, a camisa-de-força, meu corpo-terra-seca, ela-chuva. Choveu e eu bebi. Cavalo bravo, bufei, corcoveei – não de ódio, de alegria. De religião. Atéia, encontrei a deusa que abençoou esta descrente com a fé cega na sinceridade de seus suspiros.

Ajoelhou. Rezou.

Eu gritei num silêncio só meu.

Seu corpo, depois de amado, ficou cansado. Adormeceu e sonhou. As pupilas sob as pálpebras brincando agitadas.

A curva de seus quadris, o ângulo agudo do osso junto à carne farta. Para as nádegas existem as mãos. Para as suas, as minhas.

O vão sagrado entre as duas metades brancas feito maçã partida ao meio. Não tinha semente. Mas era de comer. Com a ponta da língua, feito mel. Chave na fechadura.

Ela gemeu, mas os olhos não se abriram.

Manhã clara me pegou na sua maciez. Desejei toda a beleza de seus dedos longilíneos, coxas entreabertas, pescoço de cisne, beleza sem penumbras, sem cortinas, sem janelas fechadas.

Eu abri a janela.

O sol foi cruel no seu rosto. Os olhos se abriram de pasmo. Espasmo. Contração. Convulsão. E era de dor. A louça que era branca trincou nas bochechas. O grito foi um guincho. Os seios, que eram torres, foram pó. O corpo, que era império, foi ruína. E ela, que era Éden, foi inferno. Anjo, caiu da graça. Condenada, queimou na estaca.

O sol fez dela uma montanha de cinza enegrecida sobre o lençol de seda púrpura.

Na ponta da minha língua, o gosto do fruto que madurou e apodreceu.

terça-feira, junho 07, 2005

Caia na noite: Capítulo 6

Vinte e três horas


Faltavam poucos dias para a chegada do verão, mas a noite estava fresca. Não pensara que poderia precisar de um agasalho e os pêlos de seus braços, brancos de água oxigenada, se eriçavam a cada brisa que varria os degraus diante do teatro, enquanto, na Zona Leste da cidade, sua mãe acreditava piamente que fora dormir na casa de Cristiane. Se acreditasse em Deus, rezaria para que a amiga não lhe telefonasse, comprometendo sua palavra; afinal, não se falavam desde a semana anterior.

23h em ponto no seu relógio de pulso. Fabiano sempre se atrasava. Alguns poucos transeuntes, indo ou voltando dos pequenos antros do centro da cidade, olhava-na, curiosos, e ela se felicitou por ter deixado em casa seu visual mais exuberante, ou alguém poderia tomá-la com uma prostituta. Poucas garotas ficariam sozinhas num local tão destacado e numa hora tão avançada.

Pensou em esconder-se em alguma sombra enquanto esperava, de forma que pudesse ver Fabiano chegar sem chamar a atenção de mendigos e bêbados, mas não achou nenhum lugar entre as estátuas enegrecidas do Teatro Municipal, que ainda dominava a paisagem daquela área que já fora uma das jóias da cidade.

23h20 e nem sinal do rapaz. Precisaria tomar um táxi para casa? Tinha dinheiro, mas e coragem? As superstições de Cristiane haviam-na afetado mais do que admitia. Taxistas são homens como outro qualquer. Podem ser loucos e criminosos como outro qualquer. Ligar para o pai, nem pensar. Para ele, ela estava na casa da amiga. Ainda teria tempo para pegar o metrô, mas a distância entre a estação mais próxima e sua casa não encorajava um trajeto a pé.

– Fabiano: é melhor você estar de carro! – murmurou, de si para si.

Foi quando ela o viu ao longe na porta da estação Anhangabaú. Em vez de caminhar até ela, fez-lhe sinal para que viesse ao seu encontro. Sem pensar duas vezes, ela correu até ele.

– Nossa, você demorou... – murmurou ela.

Ele apenas meneou a cabeça, desdenhosamente.

– Lilica... você é ainda mais bobinha do que eu pensei.

– Quê?!

– Que horas são? 23h30? Isso lá são horas de uma menina de família andar por aí sozinha? Ainda mais nesta região!

– Mas... foi você quem combinou assim!

– Exato! E você nem discutiu! Mas vamos.

Confusa, consternada, mesmo assim ela o seguiu pelas ruas. Não conhecia nada aquela região, por isso era melhor manter-se bem próxima a ele. Não sabia o que fazer primeiro, se devia repreendê-lo por tê-la deixado esperando, se devia pedir-lhe explicações, se...

Tinha a impressão de que estavam sendo seguidos. Teve medo que se tratasse de um ladrão, mas logo constatou que quem os acompanhava de perto era, uma vez mais, a garota do restaurante. A namorada de Fabiano foi-se aproximando sem pressa, num passo leve e despreocupado, até caminhar lado a lado com ele, não deixando de fitar Liliana com o interesse das crianças pequenas ao encararem estranhos na rua. Apenas os três estavam ali.

– Qual é o nome dela? – perguntou Liliana num sussurro temeroso, mal movendo os lábios, como um ventríloquo. A garota lhe metia um estranho receio.

– Marisa. Mas não precisa cochichar.

– Você me chamou de boba. Por quê? Eu fiz tudo como você disse.

– Bom, Larissa, é esse o seu problema. Você fez tudo como eu mandei desde o começo. Guardou o cigarro, tirou a lente de contato, daí pintou o cabelo de uma cor comum e veio pro centrão nesse horário absurdo, sozinha, sem nem ter certeza de que eu cumpriria minha palavra. Percebe o que estou dizendo?

– Não...

– Seu julgamento é péssimo! Em nenhum momento você me questionou de verdade. Não pensou na sua individualidade, nem na sua própria segurança. Estava louca para agradar, feito um cachorrinho. E ainda acredita que é autêntica. Sabe, ser autêntica não é usar um cabelo diferente e uma roupa exótica, é fazer tudo isso só se você tiver certeza de quem você é e do que quer da vida.

Diante do olhar desolado da garota, Fabiano, inalterado, reclinou-se junto a seu ouvido e falou, em tom de confidência:

– A Marisa disse que você tem uma personalidade fraca e suscetível e que vai levar alguns anos para adquirir firmeza de objetivos, se é que um dia fará isso. Não dá pra dizer já porque você ainda é muito imatura. Não conseguiria agüentar o nosso tranco...

– Fabiano...

– ... Então não vai rolar, sinto muito.

– Mas isso é ridículo! É um absurdo! – Liliana, indignada, angustiada, procurava palavras para sua defesa. – Você não pode fazer isso comigo! Não agora que já vim tão longe. O que é que ela sabe de mim? Ninguém sabe nada de mim, vocês não me conhecem! Eu sei muito bem o eu sou e o que quero! É só me dar uma chance e vocês vão ver, todo mundo vai ver!

– Rebeldia demais, causa de menos. Está bem, então, Lila: o que é que você quer de verdade?

– Eu quero... poder fazer coisas extraordinárias!

– Então vai estudar! Ou junta umas amiguinhas, funda uma ONG para salvar golfinhos ou reciclar lixo. Vai servir sopa aos sem-teto, visitar velhinhos e crianças abandonadas em instituições. Ou bota uma mochila nas costas, vai viajar, conhecer o mundo, crescer como pessoa. Isso, sim, é extraordinário. Acorda para a vida!

– Eu não estou aqui para receber lição de moral de você!

– Meu, você é burra demais! Burra até o osso! Você é o perfeito protótipo dessa geração anestesiada por videoclipes e viciada em bate-papo virtual, conectada a tudo menos ao mundo real. Você não está pronta, será que não entende?

– Eu nasci pronta! – Liliana fez Fabiano piscar com as gotículas de saliva que saíram de sua boca, tamanho o furor com que defendia sua posição. Buscando superá-lo, pôs-se à frente dele, instintivamente, detendo a caminhada do grupo, enquanto falava: – Você não entende! Mas ninguém entende mesmo. Eu sempre fui diferente, sempre ansiei por algo especial... que me tirasse desta condição miserável, limitada...

– Você quer dizer humana.

Era Marisa quem a interrompia e a quem Liliana se dirigia agora:

– Humana é tudo que eu não quero ser!

Como se não a tivessem escutado, Marisa e Fabiano passaram por ela, cada um por um lado, e continuaram a subir uma rua. O rapaz olhou para trás com pouco interesse:

– Você vem ou não?

Sem pensar, correu para acompanhá-los.

Na próxima semana, conheça os segredos dos... Cantos escuros.


 

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